Quem disse que ciência e tecnologia não são coisas de mulher?, por Xenya Bucchioni

24 de agosto, 2016

(HuffPost Brasil, 24/08/2016) Ainda muito dominado pelos homens, o universo da ciência e da tecnologia tem atraído, cada vez mais, o público feminino. Foi pensando em impulsionar esse cenário que surgiu o MariaLab Hackerspace, um coletivo formado em 2013 disposto a criar um ambiente seguro e estimulante para a troca de conhecimento entre mulheres.

De lá para cá, a ideia não apenas deu certo como cresceu. Atualmente, o coletivo integra mulheres com as mais variadas vivências e tem marcado presença em espaços importantes como a Campus Party, onde, este ano, elas apresentaram um painel sobre a atuação do MariaLab na luta pela redução da desigualdade de gênero na tecnologia.

Além da participação em eventos mistos, o coletivo tem orientado suas atividades para abarcar as minorias como mulheres negras, cis, trans e de genêro binário. Uma caminhada centrada no desejo de empoderar e emancipar as mulheres para que elas adquiram confiança, voz e vez na área de tecnologia.

Na entrevista que segue, as mulheres do MariaLab contam mais sobre a trajetória do coletivo e os desafios de manter essa experiência.

A experiência de espaços que funcionem como um laboratório tem sido cada vez mais comum nos campos da educação e cultura. Qual o entendimento que vocês têm sobre essa ideia?

MariaLab : A ideia dos laboratórios como espaço de troca de conhecimento e aprendizado insere-se no contexto da cultura maker, que estimula as pessoas a fazerem, por si próprias, o que quer que seja. Nos últimos anos, a inovação tecnológica tem resultado em uma série de ferramentas novas e em mudanças no processo de produção que impactam diretamente nos padrões de consumo e nas estruturas sociais como um todo. Contamos agora com impressoras 3D, com placas de hardware a custo reduzido etc. Além disso, a internet reduziu as distâncias geográficas e ampliou o alcance da comunicação, tornando-a praticamente imediata. O que uma pessoa posta no Egito pode ser lido em tempo real no mundo todo por um grande número de pessoas. Se eu coloco um projeto no GitHub [uma rede social voltada aos programadores, onde é possível atuar de forma colaborativa], qualquer pessoa pode replicá-lo e modificá-lo. Nesse novo mundo vemos uma valorização crescente de ideias como colaboração e horizontalidade, em detrimento da centralização e da hierarquia. Ou seja, todo mundo é ao mesmo tempo emissor e receptor do saber. E, isso, por sua vez, é uma das ideias centrais desses laboratórios.

E como o MariaLab atua? Existe uma programação fechada? Gostaria que vocês contassem mais sobre as atividades do dia a dia

A organização do grupo conta atualmente com oito pessoas. Somos mulheres entre 25 e 35 anos, cis e trans, negras, brancas, mestiças, orientais, com distintas orientações sexuais e diferentes experiências profissionais, tentando trazer nossos olhares e diferenças para o funcionamento do grupo. Uma atividade regular tem sido o grupo de estudos para programadoras liderado pela Vanessa Tonini e que ocorre a cada 15 dias, e estamos avaliando possibilidades de um grupo de estudos voltados à administração de sistemas, área pouquíssimo explorada e incentivada às mulheres. Este ano, estamos tocando também outros dois projetos: Vedetas, uma servidora (licença poética por conta do recorte feminista) segura com serviços de colaboração, comunicação e hospedagem seguros para minimizar ataques contra coletivos e ativistas feministas, e oficinas de introdução a temas de tecnologia que envolvem o Prêmio Mulheres Tech em Sampa (manutenção de computadores, mercado de trabalho, dados abertos para estatísticas voltadas à mulher e programação). A melhor forma de saber as datas das oficinas referentes a cada um desses projetos é seguindo a gente no Facebook, e em breve em nosso site, que está passando por reformulações por conta do crescimento e da abrangência das atividades.

Diante desse crescimento do MariaLab, qual o desafio atual em fazer a engrenagem funcionar?

O principal desafio é o financiamento, seja para oferecer “coffee” às participantes durante as atividades ou para custear o transporte de quem vem de mais longe. Temos grande intenção em despertar o interesse pela tecnologia também por parte das mulheres da periferia e isso é bastante mitigado pela verba limitada, pela dificuldade de concessão de espaços com infraestrutura viável para oficinas fora dos centros e pelo fato de todas as organizadoras do MariaLab trabalharem de forma voluntária, o que, eventualmente, gera impedimentos sejam de tempo ou financeiros. Também sentimos falta de um espaço próprio, embora tenhamos acesso a espaços de parceiros. Um desafio adicional é despertar o interesse de novas tutoras e organizadoras. É comum perceber um certo distanciamento pelo fato de sermos um coletivo com proposta de hackerspace. Logo é preciso traçar estratégias para educar continuamente e lembrar que a cultura maker e hacker trata de fazer o melhor pela comunidade e pelas outras pessoas com o conhecimento e a tecnologia que cada um já tem, proporcionando a troca de experiências para aquisição dos conhecimentos que, ainda, não se possui. Neste sentido, a diversidade que alcançamos por meio da interseccionalidade ajuda muito, mas é um esforço contínuo para mostrar na prática e desenvolver um diálogo que torne outras mulheres mais confortáveis a contribuir com o que têm de melhor.

Ainda pensando nisso, qual a importância ou a participação dos editais governamentais para as atividades do MariaLab se manterem?

Por conta dessas dificuldades, ainda é bastante complicado engajar mais pessoas em torno de editais. Felizmente, no momento, estamos conseguindo nos estruturar e nos articular tecnologicamente para organizar e encabeçar essas questões, visto que é um tema vital para nós o engajamento de mais mulheres na tecnologia e que essa tecnologia esteja a serviço da transparência das contas governamentais, dos dados estatísticos abertos, especialmente, no que tange às questões mais delicadas das mulheres no Brasil como, por exemplo, o feminicídio, o assédio, a lesbo, bi e a transfobia, o desemprego de mães e mulheres especialmente relacionadas ao etarismo. No momento, muitas das nossas integrantes, dentro e fora da organização, atuam em iniciativas públicas e privadas endereçando tais questões. Com uma maior força organizacional teremos a possibilidade de dividir e auxiliar a comunidade em relação aos editais governamentais mais críticos.

Nessa caminhada de vocês, qual o espaço ocupado pelos softwares livres? Vocês veem alguma resistência ou dificuldade em relação a esse uso por parte do público das oficinas?

O envolvimento de software e tecnologia livre é imprescindível nas nossas oficinas. Recentemente, nas oficinas mais técnicas cedidas para o projeto Vedetas, temos sido acompanhadas por um público que tem profundo interesse e pouquíssima intimidade com ferramentas livres, sistemas operacionais de código aberto e tecnologias seguras, mas que estão dispostos a trabalhar os hábitos e assimilar gradualmente tal filosofia em suas vidas. Temos integrantes com muita  participação no núcleo da comunidade de software livre, profissionais que atuam diretamente na implementação e desenvolvimento de tecnologias abertas, e isso acaba criando uma empatia e uma disposição em nos procurar e dividir experiências e dúvidas. No momento, não menos importante do que incentivar a utilização de software livre, seguro e antiespionagem, buscamos educar as pessoas para que façam isso com as tecnologias que já trabalham e dependem, em uma migração sadia, menos forçosa e aterrorizante (temos relatos de várias mulheres que se sentiram desencorajadas em avançar nesse tema por conta da abordagem incisiva de alguns membros da comunidade, em sua maioria homens). Na última Cryptorave, marcamos presença na Install Fest com um saldo positivo: dos 15 computadores “libertados” [para software livre], quatro eram de mulheres. Além disso, tivemos uma conversa bastante sadia e de encorajamento das outras mulheres, que saíram de lá com uma perspectiva mais positiva para essa migração. Para esse semestre, temos projetos de fazer a nossa própria Install Fest e iniciar oficinas de média duração com temas como manutenção preventiva e sustentável de computadores, iniciação ao Linux e ao Shell Script para automação cotidiana de tarefas e segurança preventiva para computadores pessoais e smartphones.

Que balanço vocês fazem da trajetória destes três anos de existência do MariaLab?

Ainda estamos relativamente distantes da possibilidade de um espaço itinerante de ensino e de um hackerspace. Porém, estamos conseguindo alcançar um número crescente de mulheres que, muito além de serem capacitadas, ganharam protagonismo e, hoje, atuam em diversas áreas do conhecimento tecnológico. Algumas com seus próprios projetos pessoais e coletivos de fins variados, mas todas em torno de um objetivo comum que é o protagonismo da mulher nas ciências exatas. No último ano, alcançamos uma projeção que, por vezes, está, até mesmo, além das nossas mãos. Mesmo com as dificuldades de gestão conseguimos estender nossos ideais para além dos ambientes exclusivamente femininos. Atualmente, mantemos o blog Faça Você Mesma, no Link, dentro do portal do Estadão, sem perder a autonomia e sem abandonar os valores que nos acompanham desde o princípio. Acima de tudo, poder atuar nas demandas de educação profissional da mulher, em que tanto iniciativas públicas quanto privadas não têm chegado, é sem dúvida uma realização que torna nossa energia renovável e mais vibrante.

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