Projeto de lei pretende mensurar a riqueza gerada pelas atividades não remuneradas e dar visibilidade a um trabalho feito essencialmente por mulheres
(CartaCapital, 19/06/2017 – acesse no site de origem)
A proposta de reforma da Previdência estabelece 62 anos como idade mínima para que mulheres possam se aposentar e 65 anos para os homens. Apesar da diferença, especialistas em gênero e participação da mulher no mundo do trabalho afirmam que o cálculo exclui as horas diárias que mulheres trabalham a mais que os homens e colabora para invisibilizar ainda mais o trabalho doméstico não remunerado.
A chamada “economia do cuidado” é o conjunto de atividades não remuneradas, geralmente exercidas por mulheres, como a limpeza da casa, preparação de alimentos e o cuidados com crianças, idosos e doentes da família. Um pacote que vale 11% do PIB atual segundo os cálculos da pesquisadora Hildete Pereira de Melo, professora de economia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e vice-presidente da Associação Brasileira de Estudos do Trabalho (Abet). Em valores, foram cerca de 634,3 bilhões de reais em 2015, último dado disponível.
A pesquisadora iniciou seus estudos sobre invisibilidade da mulher no mercado de trabalho em 1978 e, desde 2001, ela e sua equipe utilizam os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e e Estatística (IBGE) para calcular quanto vale o trabalho doméstico não remunerado. Contabilizar o valor dos afazeres domésticos no PIB do Brasil só se tornou possível a partir de 2001, quando o IBGE introduziu na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) a pergunta referente ao número de horas despendido pela população para executar essas atividades.
A conta, no entanto, ainda está aquém da realidade. Os dados do IBGE são a base dos cálculos de Melo, mas eles colocam numa mesma cesta um série de trabalhos que, quando remunerados, têm valores diferentes, como limpeza, cozinha ou o cuidado com idosos – tudo é classificado de forma genérica como “afazeres domésticos”.
Para calcular a participação dessas atividades no conjunto das riquezas do País, os pesquisadores usam a média da remuneração das empregadas domésticas, que é diferente da renda de uma babá ou cuidadora de idosos, por exemplo.
É essa falta de dados mais precisos sobre o uso do tempo não remunerado que distorce o dado brasileiro em relação ao de outros países. Apenas na América Latina mais de 10 países já dimensionam o valor das atividades domésticas não-remuneradas no PIB. A média fica na casa dos 20%: 24,2% do PIB no México; 20,4% na Colômbia; 18,8% na Guatemala e 15,2% no Equador.
De casa para o PIB
Segundo a deputada, 82% dessas atividades são realizadas por mulheres, mesmo num cenário em que 40% dos lares brasileiros são chefiados por mulheres de acordo com dados do IBGE, uma evidente jornada dupla. Ainda segundo o instituto, homens dedicam cerca de 10 horas semanais às atividades não remuneradas, enquanto as mulheres dedicam pelo menos o dobro desse tempo. E mais: 40 milhões de mulheres têm como atividade única o trabalho não remunerado.
“Quando se trata de reforma da Previdência, dar visibilidade ao papel da mulher é mostrar que esse trabalho precisa ser reconhecido como riqueza”, afirma a deputada federal Ana Perugini (PT-SP). “Não há como ele ser reconhecido sem se estabelecer um valor. Só mensuramos a economia produtiva e não a reprodutiva. É comum dizer que o valor de um país está em seu povo, então precisamos saber de tudo que ele produz”, define.
Mensurar e atribui valor ao trabalho doméstico não remunerado é bandeira, inclusive, da ONU Mulheres. Segundo documento do órgão, o trabalho de cuidado não remunerado e o trabalho doméstico suprem carências em matéria de serviços públicos e infraestrutura. Eles formam uma carga e uma barreira injustas para a igualdade de participação no mercado de trabalho e na igualdade de remuneração.
A visibilidade das atividades realizadas dentro de casa é o foco da proposta, como defende a deputada Ana Perugini. Hildete Melo, da UFF, reforça a ideia. A pesquisadora conta que já chegou a ser abordada por donas de casa que se sentiram valorizadas quando souberam que seu trabalho tem um valor efetivo.
“São 40 milhões de mulheres que trabalham exclusivamente em casa. Pensa na insatisfação que isso gera dentro de como o mundo do trabalho se organiza”, questiona. “Reproduzir a vida” – e não só falando na reprodução de fato, mas também do cuidado necessário para que outras pessoas gerem riqueza material – “é importante. Nós fazemos o que os homens fazem, mas eles não fazem tudo o que fazemos”, afirma Melo.
Visibilidade é a palavra chave. É por isso isso que calcular o valor das atividades domésticas tem muito mais a ver com divisão sexual do trabalho do que com as Contas Nacionais, aquelas que calculam o PIB do país. “A não valoração decorre da discriminação sofrida pelas mulheres, a quem foi delegada a execução dessas atividades. A teoria econômica não fala nada sobre a economia reprodutiva, é tudo sempre pelo viés mercantil, só se trata do que se vende. Mas não se cria uma criança, se cuida de um idoso ou doente para vender”, ressalta Melo.
A professora explica que as Contas Nacionais medem, por conceito, todas as operações socialmente organizadas para a obtenção de bens e serviços, sejam eles transacionados ou não no mercado, a partir de fatores de produção obtidos no mercado.
Isso inclui toda a produção para consumo próprio da agricultura e a produção por conta própria de bens de capital fixo imobilizados pelo próprio produtor, a casa em que se mora, por exemplo. Inclui também os serviços domésticos remunerados. “No caso do trabalho doméstico, quando exercido por terceiros, o valor desse serviço não mercantil equivale ao valor de sua remuneração, mas quando exercido por alguém da própria família ele não é computado nas contas nacionais”, esclarece.
O valor capturado ao se medir o trabalho doméstico não entraria de fato no PIB, ou seja, não inflaria o indicador. O projeto de lei, que segue recomendações internacionais e experiências já colocadas em prática em outros países, propõe a criação da chamada “conta satélite” específica para o trabalho doméstico não remunerado que funciona de forma paralela às Contas Nacionais, sem alterar seus resultados, mas fornecendo subsídios para quantificar a contribuição real do trabalho doméstico não remunerado.
A professora Hildete Melo explica que alguns países têm sua conta satélite restrita ao trabalho não remunerado em casa, outros ampliam esta contabilidade incorporando toda a produção realizada no interior dos domicílios incluindo, por exemplo, atividades de costura ou de preparo de alimentos “para fora”, a chamada conta satélite da produção domiciliar. “O fundamental é que a conta satélite expressa de forma realista essa economia não remunerada. O IBGE já tem as ferramentas para fazer esse cálculo. O que falta é verba para detalhar em quais atividades específicas as horas dos ‘afazeres domésticos’ são usadas e fazer a conta”, diz.
Dimalice Nunes