(Ponte, 27/10/2014) Entre as agendas prioritárias destacadas pela presidente Dilma Rousseff na última rodada das eleições presidenciais, uma das mais urgentes é o enfrentamento ao racismo em sua forma física: o racismo que mata. Dilma assumiu, em 20 de outubro, durante comício em Itaquera, zona leste da capital paulista, que um dos principais compromissos de seu novo governo será o combate à violência contra jovens negros. “Eu quero dizer aqui em alto e bom som um compromisso que eu tenho: eu tenho um compromisso de lutar contra a discriminação da juventude negra deste país, contra os autos de resistência, contra esse morticínio”, declarou, diante de milhares de mulheres, homens e – principalmente – jovens negros. Naquela noite, Dilma dividiu o palanque com o ex-presidente Lula, o prefeito Fernando Haddad, o ex-ministro Alexandre Padilha, o senador Eduardo Suplicy, o deputado federal Jean Willys, representantes de movimentos sociais LGBT, de juventude, de mulheres, de cultura, de moradia, e artistas do rap, hip hop e funk, ídolos dessa juventude, como Emicida, GOG, Sergio Vaz, Lirinha, Negra Li, Tulipa Ruiz, entre outros.
O problema é mesmo urgente e se configura como uma das principais violações de direitos humanos que ocorrem no Brasil. De acordo com o Mapa da Violência, em 2012 aconteceram cerca de 56 mil homicídios, sendo que mais de 74% das vítimas eram negras (para o IBGE, “negros” é a soma dos pretos e pardos). Isso corresponde a 41.127 negros – a grande maioria jovens – assassinados.
É um quadro que vem se acentuando por falta de políticas especialmente dedicadas à combatê-lo. Evidência disso é que entre 2002 e 2012 as taxas de homicídios de brancos diminuíram 24%, enquanto que as de homicídios de negros aumentaram 7,8%. Com isso, a taxa de vitimização negra (quantos negros a mais morrem vítimas de homicídio em proporção às mortes de brancos na mesma condição) praticamente duplicou, passando de 73% para 146%. Significa que as ações tomadas nas áreas em que predomina a população branca surtiram efeito, justamente porque fazem parte das classes de renda mais alta, que podem contratar segurança privada. Mas não são resultado de políticas públicas mais consistentes. E é isso que precisamos cobrar da nova gestão da presidente.
Não foi a primeira vez que Dilma abordou esse tema na campanha. Em setembro, durante visita à cidade de Nova Lima (MG), ela afirmou que pretende trabalhar pelo fim dos “autos de resistência” ou de alegações como “resistência seguida de morte”, uma herança da ditadura que concorre com a violência policial pautada pelo racismo. Não por acaso, 61% das vítimas de mortes cometidas por policiais em São Paulo, entre 2010 e 2011, eram negras, de acordo com a pesquisa “Desigualdade racial e segurança pública”, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Além disso, o critério de suspeição policial principal é a cor da pele, como demonstra a pesquisa “Racismo Institucional: a cor da pele como principal fator de suspeição policial”, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). De acordo com o estudo, cerca de 65% dos policiais militares entrevistados declararam que negros são priorizados nas abordagens.
Políticas públicas e eleição
Nos últimos 10 anos, aconteceram incontestáveis avanços sobre a questão racial no país: a criação da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), o estabelecimento do Estatuto da Igualdade Racial, as políticas de cotas raciais nas Universidades Federais e no serviço público. São, embora importantes, ainda esforços muito limitados diante do abismo que separa as oportunidades para brancos e para negros. Muito mais precisa ser feito. Com urgência, as mortes violentas de jovens negros precisam ser combatidas. Uma política pública especialmente voltada para enfrentar o genocídio de jovens negros é o Plano Juventude Viva, uma parceria entre a Secretaria Nacional de Juventude, integrante da Secretaria Geral da Presidência da República, e a Secretaria de Políticas de Igualdade Racial (SEPPIR).
Construído de maneira participativa, com consultas nos estados onde foi implementado, as ações do Juventude Viva têm como objetivo “fortalecer a trajetória dos jovens e a transformação dos territórios, promover os valores da igualdade e da não discriminação, o enfrentamento ao racismo e ao preconceito geracional, que contribuem com os altos índices de mortalidade da juventude negra brasileira”. O plano tem a virtude de colocar na agenda do governo brasileiro a violência contra a juventude negra. Mas precisa ganhar escala e ser ampliado com investimentos. Mesmo assim, ainda que seja insuficiente, é a primeira vez que existe uma política pública especialmente voltada para esse problema.
Ponte acredita ser fundamental criar mecanismos de enfrentamento ao racismo, que é persistente e profundo. Essa certamente é a expectativa daqueles que votaram em Dilma, especialmente no norte e nordeste, regiões onde se concentra a maioria da população negra brasileira e de onde partiu grande parte de seus votos. Sabemos que a imprensa tem um papel importante na consolidação de políticas, em agendar as demandas da sociedade, em acompanhar a execução dessas políticas públicas, em investigar denúncias. Nós, da Ponte, firmamos, desde já, nosso compromisso de ser os mais intransigentes fiscais do cumprimento das promessas de campanha da presidente eleita na área dos Direitos Humanos, do enfrentamento ao racismo e do morticínio nas periferias. Nossa arma, como sempre, é o jornalismo investigativo e de qualidade.
Maria Caroline Trevisan
Acesse no site de origem: Enfrentar o racismo na nova gestão Dilma (Ponte, 27/10/2014)