(Folha PE, 03/05/2016) Não é só na prostituição que as negras são menos valorizadas. Ser barrada em agências bancárias, observada pelos funcionários de lojas e ter salários menores em quaisquer dos segmentos da economia. Coordenadora do Movimento Negro Unificado, a pernambucana Marta Almeida já passou por todas essas situações.
“É sempre tudo muito constrangedor. Nós não passamos despercebidas em lugar nenhum, porque tem sempre alguém que desconfia da gente”, reclama. Ser negro na sociedade é um ato político, para ela. “Nós sobrevivemos num mundo que, do nascer ao morrer, somos vítimas de racismo e de todos os tipos de violência que se pode imaginar.”
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Para ela, nem mesmo a cultura afrodescentendente é respeitada. “Toda sexta, na nossa religião, a gente se veste de branco. Na última sexta-feira, outra mulher negra me abordou para comentar da tristeza de não poder utilizar as roupas que eu vestia. É que, em ambientes corporativos, às vezes os uniformes são exigidos. Nem minha filha pode, inclusive, porque tem que usar a farda do colégio”, comenta.
Para a doutora em antropologia pela UFRJ, Elielma Machado, um dos causadores da diferenças sociais é o “acúmulo de desvantagens” reunido ao longo da História. “Historicamente as mulheres negras colecionaram dificuldades. Primeiro como escravas, depois como alforriadas sem direitos ou acesso à educação. Tudo isso fez com que chegassem a um posto que as impossibilita de conseguir uma mobilidade social.”
Origens da desigualdade
Os navios que aportaram durante décadas no Brasil trazendo africanos para trabalhar nos mais variados ofícios, foram os mesmos que deixaram aqui o sentimento de superioridade do branco em relação ao negro, de acordo com o doutor em História pela UFPE, Severino Vicente.
Apesar dos avanços sociais pelos quais o País passou nos últimos anos, a desigualdade que persiste pode ser entendida como resquícios de uma história que sempre relegou ao negro o papel servil, valorizando seu corpo enquanto depreciava sua capacidade cognitiva.
“Se o homem negro já sofria naquela época, a mulher negra enfrentava ainda mais problemas por sua falta de vigor físico em atividades que traziam lucros aos patrões. A desvalorização vem desde a época da escravatura. Na venda, um homem escravo valia por duas mulheres e uma criança”, lembrou.
Quando foram libertados, os escravos não tinham condições de se integrar à sociedade. As mulheres, que na maioria, não sabiam nem ler e, quando não conseguiam emprego como cozinheiras ou domésticas, acabavam encontrando nos bordeis.
“Desde aquela época, já se observava o padrão de beleza europeia que era procurado pelos homens ricos e brancos. Os homens negros, por suas vezes, quando podiam, também buscavam as brancas nos prostíbulos, pois semeavam o desejo de se relacionar com alguém da corte”, explica.
Apesar das adversidades, cabeça erguida
Mesmo com a história de preconceito contínuo, a mulher negra nunca aceitou a falta de protagonismo na sociedade. A luta dos negros provocou mudanças coletivas observadas em todo o mundo. No Brasil, a escravidão, intensa na formação da cultura nacional, torna as vitórias mais lentas.
A ONU criou em 1948 a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que condenava o racismo e influenciou no começo dos avanços sociais para a população negra.
Também foram importantes a proibição de perseguições a cultos afro brasileiros em Pernambuco, em 1951, e as pautas históricas nos Estados Unidos, na década de 1960. Hoje, a luta continua, de várias formas.
Para a estudante universitária Aline Tavares de 22 anos, por exemplo, assumir a identidade negra e negar os alisadores de cabelo são uma dessas maneiras de se posicionar contra uma cultura imposta, que nega as raízes.
“Alisei meus cabelos desde a infância, sempre me calei perante os preconceitos, ‘me coloquei no meu lugar’. Mas nunca me senti representada. Depois que entrei na universidade, comecei a ver mais negros e depois de um tempo, comecei a me impor. Já nos tiraram tantas coisas que não podemos mais aceitar isso. É difícil desconstruir padrões”, comentou.
Para ela, o cabelo afro é importante para o reconhecimento da etnia. A proposta de reconhecer os cabelos está ligada a ideia de que não se nasce negro, mas torna-se negro.
Formas de luta menos sutis também continuam surgindo, inclusive no Recife, com grupos sedentos por melhorias e preservação dos direitos sociais. Integrante do coletivo Afronte, um desses grupos, a estudante universitária Eduarda Nunes se reúne com amigos e age para acolher os colegas que define como desamparados.
“Este mês vai acontecer no Rio de Janeiro o primeiro encontro nacional de coletivos negros para agregar força pela resistência contra a discriminação”, explicou. Para ela, ações mostram que eles não estão de braços cruzados: “A sociedade entende que o negro é feio, mas precisamos provar o contrário.”
“Subserviência também à mulher branca”
Entrevista com Regina Célia Barbosa, vice-presidente do Instituto Maria da Penha
As feministas brancas diferem das feministas negras?
Na década de 70, enquanto as brancas queimavam sutiãs, as negras continuavam como babás cuidando dos filhos delas. As negras não se envolviam nesse assunto e só se empoderaram muito tardiamente, o que atrasou os ganhos que poderiam ter tido.
Então o valor cultural entre negras e brancas é diferente, assim como a forma como a sociedade as trata atualmente. Ao longo da história, a negra não foi subserviente apenas ao homem branco, mas também à mulher branca, que queria se diferenciar. Além disso, a negra é muito mais sexualizada. E é agredida até mesmo quando o companheiro também é negro.
Por quê?
Apesar de também sofrer racismo, dentro de casa o homem negro incorpora o papel de líder e provedor. Enquanto isso, a negra que já sofre diariamente pelo preconceito nas ruas, precisa ser subserviente ao esposo e acumula o machismo dele.
Como o preconceito sobrevive?
Nossa história o enraizou. Não foi só a escravidão. Na década de 40, a ciência foi usada para dizer que a negritude estava ligada aos problemas sociais e que só com o embranquecimento da população se melhorariam os níveis sociais e reduziria índices de criminalidade. Não é fácil tirar isso da cabeça das pessoas.
É possível acabar com o racismo?
A promulgação de leis como a do racismo e a do feminicídio vem nos ajudando. Passamos por sucessivas quebras de paradigmas e, mesmo que eu não esteja viva para ver isso, acredito que um dia a Lei Maria da Penha e a do Racismo nem serão mais usadas. O fim do preconceito em qualquer grau só se dá por via da educação.
Gabriel Dias
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