Reforma da Previdência, que aumenta tempo de contribuição e idade mínima para receber benefício, vai afetar categoria
A empregada doméstica Margareth Geralda Oliveira, a sete anos da aposentaria, vê com preocupação a reforma da Previdência, que caminha na Câmara dos Deputados sob a forma da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 287. Ela, que começou a trabalhar aos 13, acredita que os 25 anos de contribuição para o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) exigidos na proposta do governo federal vai ser ainda mais difícil de serem comprovados. Aos 53, ela calcula ter contribuído por somente 15 dos 40 anos que trabalha.
(Brasil de Fato, 23/03/2017 – acesse no site de origem)
De 2003 a 2014, segundo dados do Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o contingente de domésticas sem carteira assinada que contribuíam para o INSS aumentou de 8% para 23% no período. Ainda assim, a categoria tem dificuldade de se aposentar por tempo de contribuição, já que o setor é marcado por grande informalidade. No último trimestre de 2016, 68,1% das trabalhadoras da área não tinham carteira assinada.
Oliveira, por exemplo, não consegue comprovar os anos que trabalhou na cidade de Peçanha, região leste do estado de Minas Gerais. No município pequeno e essencialmente agrícola, a dificuldade de frequentar a escola forçou sua saída antecipada da casa dos pais e a busca por emprego.
“Às vezes, [trabalhava] só em troca de comida, de onde dormir. Nem salário tinha. Quando eu comecei a estudar um pouco mais, passei a ganhar uma quantia que nem pode ser chamada de salário. Se hoje o salário é R$ 900, por exemplo, eu ganhava mais ou menos uns R$ 100”, lembra.
No final dos anos 1980, ela se mudou para São Paulo (SP) e, aos 25 anos, passou a trabalhar como diarista. Mas foi somente em 2001 que teve seu primeiro carimbo na carteira de trabalho, quando foi contratada como camareira em um flat. Seu primeiro registro como empregada doméstica –sua profissão de toda a vida– foi apenas em 2006.
Hoje, trabalhando em uma casa de família no Itaim Bibi, bairro nobre na Zona Oeste da capital paulista, ela faz parte dos 34,1% das domésticas que têm carteira assinada.
Avaliação
Para a pesquisadora Juliane Furno, que organizou os dados do IBGE em seu doutorado no Centro de Estudos em Economia do Trabalho e Sindicalismo (Cesit) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a obrigatoriedade de 300 contribuições para essas trabalhadoras de um mercado extremamente informal vai tornar a aposentadoria para a categoria “praticamente impossível”.
Ela explica que o contrato baseado no regime da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) é obrigatório para empregados domésticos desde a lei nº 5.859 de 1972, mas “a baixa fiscalização e as relações de trabalho baseadas em relações familiares mantêm esses vínculos informais”.
Já Gustavo Seferian, professor de Direito do Trabalho da Universidade Federal de Lavras (UFLA), afirma que as alterações legislativas uniformizarão o trato dos empregados domésticos e de outros trabalhadores sujeitos ao regime da CLT.
“Com estas alterações, vamos exigir o cumprimento de um requisito que vai ser dificilmente demonstrável para uma categoria que até pouquíssimo tempo atrás estava quase completamente sujeita à informalidade e alta rotatividade”, diz.
Aliado a isso, o professor aponta que, historicamente, os tribunais brasileiros tendem a ter a posição de que a categoria só poderia exigir o registro se prestasse serviços por mais de três dias por semana com o mesmo empregador.
“Nesta condição de precariedade e fragilidade, isso pode trazer um prejuízo imenso para a comprovação de vínculo e contribuições previdenciárias”, afirma Seferian.
Ao comparar seu período na informalidade com o que ela tinha carteira assinada, Oliveira ressalta o quanto acha positivo a CLT. “É muito bom por causa dos direitos que a gente tem. E agora melhorou. Antigamente, sem carteira, não tínhamos direito nenhum, fundo de garantia, seguro-desemprego”, relata, referindo-se à PEC das Domésticas, vigente desde 2015 e responsável por expandir esses benefícios à categoria.
Idade mínima
Oliveira também desconfia do aumento da idade mínima para aposentadoria das mulheres de 60 para 65 anos. “Eu sou sadia, graças a Deus, mas muitas pessoas não têm a saúde que eu tenho. Com 65 anos, você vai viver de quê? Às vezes, você não vive nem mais cinco anos, e não aproveita. Trabalha a vida toda e não aproveita a aposentadoria”, pontua a doméstica.
Segundo informações do Anuário Estatístico da Previdência Social de 2015, as mulheres corresponderam a 62,6% do total de aposentadorias por idade concedidas. Por outro lado, os homens corresponderam a 69,7% das aposentadorias por tempo de contribuição.
Para Juliane Furno, o aumento da idade mínima e a equiparação entre homens e mulheres vai dificultar ainda mais o acesso ao benefício. “O tempo de contribuição já é um empecilho porque as mulheres têm uma trajetória muito descontínua no mercado de trabalho. Elas são a maioria entre as trabalhadores informais, desempregados e entre aqueles que precisam se ausentar muito do mercado de trabalho por conta da maternidade, para cuidar de pessoas doentes na família ou idosos” diz.
E para a pesquisadora, a Previdência Social é a única política de estado que hoje identifica estas desigualdades em relação aos homens no mercado de trabalho e dupla — muitas vezes tripla — jornada de trabalho das trabalhadoras.
As mulheres compõem a esmagadora maioria dos trabalhadores domésticos: 94,5%. Destas, 66% são mulheres negras — já que o trabalho doméstico no Brasil, lembra a pesquisadora, “tem uma herança escravista muito forte”.
“Elas são o contingente que mais sofre com esse processo de crise econômica, desregulamentação do mercado trabalho e desvalorização dos salários reais”, analisa Furno.
No último dia 9 de março, após o Dia Internacional da Mulher, o ministro da Fazenda Henrique Meirelles afirmou que o mercado de trabalho superaria a defesagem entre homens e mulheres em 20 anos.
Terceirização
Durante a votação que aprovou, nesta quarta-feira (22), do Projeto de Lei 4.302/1998, que permite a contratação terceirizada de todas as atividades de uma empresa, inclusive na administração pública, a deputada Benedita da Silva (PT-RJ) afirmou que os poucos direito direitos que as domésticas conquistaram estão ameaçados com a nova legislação.
“Elas [trabalhadoras domésticas] mal acabaram de ter a profissão regulamentada, e vem uma terceirização que não vai contribuir para que o empregador possa cumprir a regulamentação que foi feita”, lamenta a parlamentar.
O professor da UFLA pontua que as atividades de limpeza e segurança são as mais terceirizadas. Ele acredita que, embora para as empregadas domésticas seja mais comum o agenciamento das trabalhadoras para prestação de serviço, a aprovação do PL é a “abertura de porteiras” para generalização das contratações através de empresas terceirização.
“Isso vai desestimular os empregadores a seguir com a formalização mais protetiva. Ainda que temos as dificuldades de organização sindical das empregadas domésticas para viabilizar salários e melhores condições para além do mínimo. Além disso, existe um ideário quase escravocrata por parte das nossas elites, no sentido que esse trabalho deve ser ainda menor remunerado, e agora, com todas essas contrarreformas, a tendência é reaflorar a ideia que agora eles podem ter empregadas de novo”, afirma.
Segundo ele, uma das “perversidades” da proposta é a facilidade, por falta de fiscalização e de atuação sindical, do calote das contribuições previdenciárias. “Não é algo que o trabalhador vai ficar sabendo se ele não correr atrás. Ele pode só vir a saber disso no momento em que for se aposentar”, diz.
Renda
Caso a reforma da Previdência seja aprovada, Oliveira entra na regra de transição. Assim, ela teria que cumprir mais três anos e meio para se aposentar. Mas ela pondera que, mesmo com o benefício, vai ter que continuar com faxinas, ainda que pontuais.
“Vou me aposentar com o salário mínimo e, se tiver com a saúde que estou, pretendo trabalhar, porque não vai dar para viver”, afirma.
A postura é semelhante à de seu marido, o ferramenteiro Elias Batista, de 70 anos. Ele se aposentou aos 50, mas ainda trabalha para “ficar mais tranquilo” com a complementação da renda familiar.
“A reforma tem que ser feita, mas de maneira que não prejudique a gente, os trabalhadores, a classe média, a classe pobre. A gente já trabalha tanto, já sofre tanto. Agora eles querem fazer essa reforma e mudar tudo? Vou perder muita coisa. Vou ter que trabalhar mais um tempão com 53 anos?”, finaliza a doméstica.
Rute Pina
Edição: Camila Rodrigues da Silva