A crise do medo da possibilidade de um estupro, por Jout Jout

20 de maio, 2016

(Nexo, 20/05/2016) O ‘Nexo’ publica em primeira mão um capítulo do livro ‘Tá todo mundo mal’ de Jout Jout, jornalista que já atingiu 800 mil seguidores no YouTube com vídeos sobre todos os tipos de tema, especialmente questões das mulheres

Desde que me lembro, meu maior medo na vida é ser estuprada. Se somarmos o tempo que já me dediquei a pensar nisso poderemos concluir que já perdi algumas semanas da minha vida para nada. E tudo piora quando penso que a lei da atração está aí solta, dominando nosso destino. Então quando penso nisso, logo acho que estou atraindo, porque estou pensando demais nisso, aí tento não pensar, mas fico pensando em não pensar e em não atrair, e só penso mais e atraio mais. Ou não atraio nada, vai saber. Não se pode brincar com best-sellers.

 

Mas enfim, lá estava eu, recém-formada em jornalismo, querendo fazer qualquer coisa menos ser uma jornalista, tentando listar minhas qualidades e talentos (o que já nos leva a outra crise) para ver em que tipo de profissão dava para me encaixar. Entrava em sites de emprego, cadastrava currículos, checava os grupos de vagas para comunicação no Facebook onde o maior salário contava 1500 reais. Cada aba do navegador me deprimia mais que a outra. Em trinta minutos de decepções, eu fatalmente acabava caindo em uma outra aba, que lia Netflix, e lá eu ficava, por horas a fio, assistindo coisas para me recuperar do desastre que era minha vida profissional.

Eis que Caio, meu namorado amado, começa uma moda de querer fazer design. Ele também recém-formado, mas em cinema, estava passando pela mesma rotina desgostosa que eu. Começou a pesquisar uns cursos em Nova York, porque ele sempre começa tudo por Nova York, e acabou caindo em um curso no centro do Rio. Além de design, também estava disponível o curso de redação publicitária. Pensei hum, interessante, eu escrevo bem e sou criativa, logo devo fazer redação publicitária. Eu devia ter lembrado que usei essa mesma lógica falha ao fazer jornalismo. A gente cresce e continua tomando decisões sem sentido. Acabou que Caio não entrou no curso de design e eu fui lá me inscrever em uma nova rotina: sair todo dia de casa às seis da tarde, andar por vinte minutos até o catamarã (o que era até bonito porque o sol estava começando a se pôr e o visual fazia a caminhada se prolongar por mais dez minutos, contando as paradas para observar o horizonte), depois dezenove minutos no mar conversando com alguém no WhatsApp e um minuto me despedindo porque eu teria que andar pelo centro e não se pode fazer isso com o celular na mão, dez minutos de caminhada da Praça xv até o curso, com o celular enterrado na bolsa, escondido com a carteira no mais profundo dos bolsos, três horas de aulas que me custavam 2 mil reais e me faziam chorar lágrimas de sangue de tão nada a ver comigo e, por fim, sair da aula dez e meia da madrugada e fazer uma caminhada de cinco minutos no escuro e sozinha até o ponto de ônibus, onde eu ficava por mais uns quinze minutos esperando o ônibus chegar. No escuro. Sozinha. No centro do Rio de Janeiro. Sim, o lugar onde as pessoas são regularmente esfaqueadas. Às vezes tinha um rapaz ou outro que podia me acompanhar, o que me trazia alívio — e ódio de ter que depender de um rapaz para sentir alívio.

O pior disso tudo não era o fato de que mais uma vez eu estava deixando minha vida escorrer com algo que não me completava em nada. A pior parte era que eu sou de fato extremamente criativa. Isso significa que eu passava o meu dia inteiro pensando em como eu seria encurralada em um beco escuro, e como eu faria para impedir meu estupro, como eu ligaria para Caio e para os meus pais, como avisaria as autoridades, como eu ia conseguir transar de novo alguma vez na vida caso o pior acontecesse, se o sujeito seria esquisito com padrões estranhos para violentar uma mulher, se eu ia pegar doenças, e que doenças, e como curá-las, o que eu poderia falar na hora que pudesse mudar a cabeça do sujeito, que outras coisas eu poderia dar para ele, se eu deveria lutar contra ou ficar lá inerte, se ele me mataria depois, e se me matasse, o que seria de Caio, que tanto me incentivou a fazer o curso, imaginava a culpa que ele ia sentir, será que ia conseguir namorar alguém de novo? Como ele ia superar esse trauma? E minha mãe? E meu pai! O que eu deixaria de viver se morresse naquele momento, o que meus amigos falariam? As pessoas chorariam? O cara ia ser preso? Qual seria o passado desse cara? Por que ele faria isso com alguém? Que tipo de pessoa faz isso com alguém?

Ou seja, ficou impossível continuar no curso. Na mesma época em que comecei a estudar de novo, comecei a fazer os vídeos. Eu não conseguia entregar nenhum trabalho direito porque estava sempre muito ocupada gravando coisas esquisitas para vinte pessoas assistirem no YouTube. E nessa época eu me recusava a desistir de mais uma coisa porque passei a vida toda me animando demais para fazer algo e sempre desistindo dois segundos depois. Não queria mais repetir esse padrão. Coisa de gente infantil, mimada, ridícula. Mas depois de alguns meses de já saber exatamente como aconteceria toda e qualquer fatalidade comigo no centro do Rio, percebi que era muito mais legal e barato fazer vídeos do que gastar 2 mil reais por mês para imaginar meu estupro — e, é claro, para fingir mais uma vez que ser criativa e gostar de escrever eram boas justificativas para fazer mais um curso do qual eu não gostava.

Julia Tolezano da Veiga Faria, ou Jout Jout, estudou jornalismo na PUC-RJ e criou o canal Jout Jout Prazer, no YouTube, que conta com mais de 800 mil seguidores e 90 milhões de visualizações.

Acesse no site de origem: A crise do medo da possibilidade de um estupro, por Jout Jout (Nexo, 20/05/2016)

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