“A taxa de homicídio de mulheres negras é o dobro da taxa das mulheres brancas”, destaca pesquisadora

06 de agosto, 2015

(Luciana Araújo/Agência Patrícia Galvão, 06/08/2015) Diversificados agentes de agressão, incluindo o Estado, maior exposição à violência tipificada na Lei Maria da Penha, inclusive no ambiente de trabalho, como no caso das trabalhadoras domésticas, e maior insegurança até mesmo dentro do lar. Estas são realidades vividas pelas mulheres negras no Brasil que evidenciam a relação intrínseca entre o racismo estruturante da sociedade brasileira e as violações de direitos sofridas cotidianamente por um quarto da população nacional.

A pesquisadora Jackeline Aparecida Ferreira Romio é uma das colaboradoras do
Dossiê Mulheres Negras: retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil (publicado pelo Ipea em 2013). Mestre e doutoranda em Demografia pelo Instituto de Filosofia e Ciência Humanas da Unicamp, Jackeline destaca o peso da escravidão, do colonialismo, da ditadura e do neoliberalismo na maximização dos índices de violência contra as mulheres negras e outros grupos, com a “função de manter o sistema de exploração e privilégios”.

Confira a entrevista concedida por e-mail à Agência Patrícia Galvão durante a produção do Dossiê Violência contra as Mulheres

Jackeline Romio (arquivo pessoal)

Jackeline Romio (arquivo pessoal)

Quais são as principais especificidades da violência doméstica quando as vítimas são mulheres negras?
Diferentemente do que idealizamos e somos ensinados a acreditar, como dizia Heleieth Saffioti, no grupo domiciliar e na família não reinam a paz e a segurança, já que nestes ambientes ocorre com frequência situações de competição, trapaça e violência, silenciadas pela regra das quatro paredes e dos segredos de família.
No caso das mulheres negras este quadro é amplificado pelo racismo, que diversifica os agentes da agressão, incluindo a violência cometida por agentes do Estado que invadem um domicilio, por exemplo.  Além da frequência em outros domicílios, caso das babás e trabalhadoras domésticas, que também podem tornar-se locais de violência doméstica híbrida com outras formas de violência, inclusive a racial.
Segundo o suplemento Características da Vitimização e do Acesso à Justiça (PNAD 2009), a sensação de segurança no lar é maior para homens que para mulheres, e maior para mulheres brancas que para mulheres negras. Embora os percentuais sejam bem próximos, 79% das mulheres brancas e 76% das mulheres negras. Um estudo mais específico para as questões de gênero e raça poderia evidenciar melhor o impacto do racismo patriarcal na experiência da violência doméstica para mulheres negras, brancas e para as indígenas e quilombolas que apresentam outras especificidades, como os conflitos por terra.

E na violência sexual, quais são as características mais presentes nos casos que envolvem mulheres negras?
Discutindo a violência sexual de forma ampla, não apenas centrada na questão do estupro e assédio, podemos ver que a mulher negra ainda tem que enfrentar a exploração sexual infantil e de adolescentes e o tráfico de mulheres, violência em que as negras compõem o grupo de maior incidência. Estes tipos de violência têm forte relação com as imagens de controle que envolvem a mulher negra como objeto de consumo e exploração sexual, como também com a ausência de políticas públicas de controle e responsabilidade midiática e com a indústria do turismo, que deveria trabalhar para a eliminação desses estereótipos, mas acaba por reforçá-los.
Gostaria de explicar como isso funciona utilizando como base os estudos da feminista negra Patrícia Hill Collins, para quem os estereótipos vinculados à representação social são fontes inesgotáveis de violência contra as mulheres negras e também confinadores sociais. Patricia descreve quatro principais estereótipos ou imagens de controle sobre as mulheres negras, que podem ser aplicados para o Brasil e nossos contextos de violência: a mammy (mãe preta); a matriarca (guerreira); a welfare mother (mãe dependente da assistência social); e a Jezebel (prostituta).

E no assassinato de mulheres, é possível perceber distinções entre os feminicídios de negras e não negras?
A ocorrência de homicídios contra mulheres no Brasil segue o mesmo perfil racial e etário dos homens: são as jovens negras as maiores vítimas. A taxa de homicídio de mulheres negras é o dobro da taxa das mulheres brancas, isto na média nacional, pois existem Estados onde a desigualdade racial é ainda maior. Há também a questão da mulher indígena, que muitas vezes é ignorada na elaboração destes índices com a justificativa de que é baixo o volume das mortes violentas nesta população. Quando calculamos a proporção destas mortes para mulheres indígenas observamos que o índice vem aumentando, aproximando-se ao das mulheres negras, demonstrando que ser vítima de homicídios tem relação com as desigualdades étnico/raciais.
É importante entender que existe diferença entre a análise do assassinato de mulheres quando utilizamos o conceito feminicídio, pois ele diz respeito aos assassinatos de mulheres por homens por elas serem mulheres. Ou seja, buscar saber o sexo do agressor, tipo de relação entre vítima e agressor, presença de violência sexual, tortura e desfiguração do corpo são aspectos essenciais para esta análise. Porém, ainda não contamos com estas informações de forma direta.
Quando pensamos nos feminicídios de mulheres negras e suas especificidades, mais uma vez aparecem novos agentes e cenários, inclusive institucionais, como a polícia. Basta lembrarmos do assassinato de Cláudia Silva Ferreira, um feminicídio racista por agente público.

E qual é a influência da cultura de violência e do racismo nos índices mais altos de violência contra a mulher negra em relação à participação das negras na população?
Muitos estudos têm discutido que a violência é marcante nas relações desiguais de poder entre homens e mulheres e relaciona-se intimamente com as opressões de raça, classe social, orientação sexual e outras formas de discriminação e preconceito. Tenho me convencido dia após dia de que não se trata de um problema de cultura e sim de política e economia, pois a cultura é fortemente influenciada por estes aspectos.
Em uma sociedade como a nossa, marcada pela escravidão, colonialismo, ditadura e neoliberalismo, estar na base da pirâmide impacta no valor que a nossa vida e o nosso trabalho têm. Acredito, assim como as feministas negras e materialistas, que a sobrecarga de violência que afeta a vida das trabalhadoras negras e de outros grupos marginalizados tem como função manter o sistema de exploração e privilégios. A enxurrada de mortes de mulheres negras e homens negros cria a cultura de que nossa vida não tem muito valor, instaura o medo e tem efeito imobilizador.

Para contatar a entrevistada:
Jackeline Aparecida Ferreira Romio – mestre e doutoranda em demografia pelo IFCH/Unicamp.
[email protected]

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