A construção da masculinidade passa, atualmente, pelos conteúdos de redes sociais, que seguem sem regulação. Enquanto cobramos por isso, devemos observar com atenção os sinais de que algo não vai bem com nossos adolescentes, para que tragédias possam ser prevenidas.
A história que chega aos meus ouvidos é assim: “Meu filho, aquele que ama futebol, vai repetir de ano”. “Nossa? Sério?”, indago, sem entender. Esse menino nunca foi muito estudioso. Gosta mesmo — e vai muito bem — de futebol, como é, inclusive, o jeito que sua mãe se refere a ele quando fala com os outros para diferenciá-lo dos irmãos. Fico surpresa, de alguma forma. Não achei que seu desempenho escolar estivesse tão aquém do esperado.
“E o conselho de classe?”, pergunto. Há sempre uma chance no conselho de classe, onde, por bom comportamento, um aluno pode se safar de repetir o ano. “O conselho de classe… sem chance. A professora me disse bem assim: ‘Esse rapaz tem uma arrogância que talvez vocês não percebam em casa, mas algo precisa pará-lo. Algo precisa mostrar que o mundo não é como ele pensa. Seu filho, mãe, é desrespeitoso com as professoras, diz que estudar não vai levá-lo a lugar nenhum e, recentemente, foi homofóbico’. E eu sei que isso é grave.”
Escutei esse relato de uma conhecida e, hoje, diante das discussões levantadas pela série Adolescência, eu me lembro dele. Não posso chamar a conhecida de amiga, porque não temos tanta intimidade, mas, por saber que trabalho com Direitos Humanos e juventudes nos projetos do Instituto Aurora, ela me contou sua situação. Talvez na tentativa de buscar uma segunda opinião sobre seu filho. Talvez só para não carregar aquele atestado sozinha.
O menino tem pai, que é relativamente presente — para os padrões de muitos homens de sua geração. Mais velho que minha conhecida, está na casa dos 50. Mas, segundo ela, o pai evita se envolver nos assuntos da escola. Enquanto ela desabafa, tentando entender se a professora está sendo dura demais ou se o filho é, de fato, o que dizem, penso que, dessa vez, o assunto será inevitável em sua casa — ou deveria ser.
A série Adolescência escancara alguns problemas — alguns antigos, outros novos: famílias exaustas pelo trabalho, adolescentes em busca de sentido e pertencimento, escolas mais reativas do que ativas e uma internet movida a ódio. Sobre este último ponto é que vou me ater mais: a série revela o quanto a internet, sem regulação eficaz, tem sido danosa para nossas crianças e adolescentes — especialmente os meninos. Meninos como Jamie, da série, ou como o filho dessa conhecida. Talvez o soco no estômago esteja, justamente, no fato de que o menino representado poderia ser qualquer um. Inclusive o filho de uma conhecida.
Assisti a uma entrevista com o produtor da série, que também interpreta o pai de Jamie, em que ele conta que foi proposital se afastar da construção de uma família “desestruturada”. A intenção era mostrar que famílias comuns, com estrutura reconhecida pelos nossos padrões, também podem estar vulneráveis aos efeitos de processos de radicalização rumo a um perfil de masculinidade extremamente violento que vem cooptando meninos na internet.
A “machosfera” se alimenta dos algoritmos que não se importam com o que é moral ou ético. Ela se propaga nos vídeos que sugerem outros vídeos, nas redes que priorizam o engajamento acima da integridade.
Dias depois do primeiro desabafo, minha conhecida me chamou para um café. Depois de um tempo quebrando o gelo, ela pergunta: “Você acha que meu filho pode ser preso? Por aquela história da homofobia?” Explico que, no Brasil, desde 2019, por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), a homofobia e a transfobia são enquadradas como crimes de racismo — portanto, inafiançáveis. Relato que tenho trabalhado com formações voltadas ao sistema de Justiça, onde cresce o número de casos envolvendo adolescentes que participam de grupos que promovem o ódio e a discriminação, como grupos nazistas e/ou misóginos.
Explico que adolescentes não cometem crimes, mas atos infracionais. E que adolescentes não vão para a prisão, mas podem ser encaminhados a unidades socioeducativas. Tento expor que, embora o sistema seja seletivo e desigual, casos de violência motivada por preconceito têm, sim, levado adolescentes à privação de liberdade. “Em poucas palavras: sim, seu filho pode ser preso.”
Chamo a atenção da minha conhecida para a possibilidade de seu filho estar sendo influenciado por conteúdos na internet — ao que ela não dá muita importância, ainda que tenha reconhecido que o menino passava muitas horas fechado no quarto, por vezes até sem fazer refeições, mexendo no celular, e que isso não era bom.
Ela se retira da sala onde tomávamos o café, segue por um corredor onde estão os quartos e volta um pouco depois. Traz nas mãos fotografias. São fotos do seu menino um pouco antes de entrar na adolescência. Ele cozinhando com ela. Ele brincando de subir nos ombros do pai. Ele com amigos — meninos e meninas. “Ali pelos 11, 12 anos, ele mudou. Eu não sei o que aconteceu. Olha aqui: ele era uma criança feliz, tinha amigos e amigas, gostava da gente. Hoje, ele me trata mal. Na verdade, ele é bem machista.”
Essa informação era nova para mim. “Como assim? Te trata mal?”, pergunto. “Ele me ofende, diz que eu sou burra, que não sei de nada, que não sou ninguém. Fala que mulher só sabe viver às custas de homem, como eu, que vivo às custas do pai dele.” E ela chora. Isso é o que um filho, à época com 15 anos, disse para sua mãe.
A cena me lembra uma passagem de Adolescência, em que Jamie, tomado por ódio, agride verbalmente sua psicóloga. O grito não é só dele — é um eco coletivo de uma geração de meninos que se sentem lesados em uma sociedade que avança nos direitos das meninas e mulheres. A impressão é falsa, mas, na narrativa misógina da internet, ela faz todo o sentido.
Fico sabendo, tempos depois, que minha conhecida tentou levar o filho ao psicólogo. Ele recusou. Ela, então, começou a fazer terapia para lidar com a própria dor. O menino repetiu de ano, e o que se esperava ser uma lição teve um efeito rebote. Em vez de humildade, veio mais raiva. Numa última conversa, ela me contou que ele disse: “As mulheres só querem roubar tudo o que os homens constroem”, ao saber que um amigo da família, acusado de violência doméstica, teve que sair de casa — onde morava com a então esposa e filhos — por decisão judicial.
Não sei se minha conhecida viu a série Adolescência. Não posso provar que seu filho estava ou ainda está envolvido em algum grupo misógino na internet.
Mas entendo que o filho da minha conhecida, esse menino que ama futebol e que, quando criança, gostava de cozinhar com a mãe, é, sim, um dos muitos meninos que circulam por um ambiente virtual sem limites, podendo ser influenciado por um ideal de masculinidade violento e que odeia mulheres.
Trago essa história para lembrar que sinais como os trazidos por essa mãe não podem ser ignorados. A construção de uma masculinidade violenta não acontece do nada. Ela é alimentada, muitas vezes silenciosamente, por famílias sobrecarregadas e confusas, escolas sem amparo para identificar esse tipo de situação desde o começo e, principalmente, redes sociais que lucram com o ódio e o caos.