Apesar de boa parte dos crimes serem cometidos por causa do desprezo à mudança de gênero, decisões judiciais não estão uniformizadas
(Metrópoles, 28/07/2019 – acesse no site de origem)
O preconceito foi responsável pelo assassinato de 63 travestis e transexuais apenas no primeiro semestre de 2019. O levantamento é da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), que luta pelos direitos desses grupos, e leva em consideração apenas os episódios noticiados pela mídia. E, entre as cruéis mortes, estão casos de transfeminicídios.
Criado pela socióloga Berenice Bento, que estuda o assunto há 20 anos, o conceito de transfeminicídio é necessário para diferenciar o crime de um feminicídio, apesar de os dois terem, em sua raiz, o ódio contra o sexo feminino e o desprezo pela condição de ser mulher.
“Nos casos contra as mulheres, a agressão acontece em casa, pelo companheiro ou ex-companheiro, e o caso acaba com o autor preso e processado. Em contrapartida, as mulheres trans são assassinadas na rua, por desconhecidos, em crimes bárbaros que, em 90% dos casos, não chegam à Justiça”, conta Berenice, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Outra diferença considerável, diz a socióloga, é o próprio luto. As mulheres, de maneira geral, têm velório, uma família que chora, a sociedade que demanda justiça. No caso das mulheres trans assassinadas, muitas vezes, não há ninguém para reconhecer o corpo, e elas acabam enterradas como indigentes.
De acordo com Keila Simpson, presidente da Antra, também há casos em que elas são assassinadas pelos ex ou atuais companheiros ou por relacionamentos ocasionais que ocorrem por razões de gênero. “Para além disso, no caso específico do transfeminicídio, percebemos que o autor está, na maioria das vezes, matando o feminino que a pessoa apresenta e ostenta. Os crimes são realizados com requintes de crueldade. Ele não dá um tiro, dá 10”, explica Keila.
Berenice conta que é uma morte ritualizada, violenta, em que se esquarteja, joga-se o corpo em uma lata de lixo ou ribanceira. “O autor está passando várias mensagens, entre elas a de que não é aceitável que um homem, em posição de poder, faça a transição para o lugar do frágil, do penetrável, do matável. Estão matando os traidores que abandonaram o poder. É um recado”, afirma.
O caso da mulher trans em Campinas (SP) que teve o coração arrancado e trocado por uma imagem sacra, segundo a presidente da Antra, deixa isso muito claro. O assassinato aconteceu em janeiro de 2019. “Ele era um demônio, eu arranquei o coração dele. É isso. Não era meu conhecido”, afirmou Caio Santos de Oliveira, o assassino confesso de Quelly da Silva.
Amparo legal
Em maio de 2018, uma decisão inédita da Justiça do Distrito Federal indicou que os casos de violência doméstica contra mulheres trans podem ser julgados na Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e elas devem ser abarcadas em medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha.
Raquel Almeida Duarte foi atacada pelo ex-namorado por ciúmes, precisou ser internada e passar por uma cirurgia. O juiz de primeira instância negou que o agressor fosse processado de acordo com a Lei Maria da Penha, alegando que a legislação defendia apenas mulheres que nasceram com corpo feminino. Os advogados da mulher trans entraram com recurso.
A 1ª Turma Criminal revisou a sentença e reverteu a decisão, afirmando que “liberdade de gênero não se prova”. “Além disso, uma vez que se apresenta dessa forma, a vítima também carrega consigo todos os estereótipos de vulnerabilidade e sujeição voltados ao gênero feminino, combatidos pela Lei Maria da Penha”, diz a decisão.
Em abril do mesmo ano, a Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF) abriu o primeiro inquérito para investigar uma tentativa de feminicídio contra uma mulher transexual. O caso aconteceu em Taguatinga Norte e foi investigado pela Delegacia Especial de Repressão aos Crimes de Intolerância (Decrin).
A juíza Fabriziane Zapata, do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Riacho Fundo, considera que a Lei Maria da Penha se aplica a todo tipo de violência baseada em gênero cometida contra a mulher.
“Em relação à vítima transexual, discute-se se a lei teria utilizado um critério biológico ou um critério sociopsicológico. Existem algumas decisões que negam a aplicação da Lei Maria da Penha à vítima transexual feminina. Mas, por outro lado, há decisões no país, inclusive aqui no DF, determinando que a transexual feminina seja sim protegida pela Lei Maria da Penha”, afirma. O Fórum Nacional de Juízas e Juízes de Violência Doméstica (Fonavid) tem o entendimento de que a lei se aplica às vítimas trans.
Com o objetivo de deixar a legislação ainda mais clara, em maio de 2019, a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado aprovou o Projeto de Lei 191/2017, que pretende ampliar o alcance da Lei Maria da Penha e garantir proteção às mulheres trans. Em seu parecer, a senadora Rose de Freitas (Pode-ES), relatora da matéria, escreveu: “Somos pela conveniência e oportunidade de se estender aos transgêneros a proteção da Lei Maria da Penha”. O assunto agora passa para a deliberação do plenário da Casa.
No caso do feminicídio, a lei fala em crime “contra a mulher por razões da condição de sexo feminino”, o que abre lacunas para diferentes interpretações. Porém, há casos em que a Justiça entende a mulher trans e as circunstâncias da morte como sujeitas à aplicação da lei.
“É um caminho para usarmos a lei que existe e fazer valer nossos direitos. Seguimos trabalhando para a criação de uma legislação específica”, diz Keila. Apesar de ser importante contar com a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio, a Antra entende que um tipo legal feito para qualificar os crimes contra transexuais e travestis é essencial para garantir punição apropriada para os agressores e para coibir essas situações. “No Brasil, a população se sensibiliza mais com um animal que morreu na estrada do que com o assassinato de uma pessoa trans. Só nós sabemos e sofremos por essas vítimas. A sociedade precisa enxergar esses crimes”, afirma Keila.
Berenice, em contrapartida, não acredita que uma nova lei vá resolver o problema. “A violência de que estamos falando é a ponta, o fim, o assassinato cruento. Mas este corpo que morreu é marcado pelas violências institucionalizadas e não institucionalizadas que sofreu a vida inteira. Foi expulso de casa, expulso da escola, não consegue entrar no mercado de trabalho. É preciso entender que existem múltiplas formas de exercer o gênero e que as pessoas têm, sim, direito a mudar.”
Por Juliana Contaifer