(Revista Fórum, 15/11/2015) Flávia* odiava ir às aulas práticas da autoescola. No início, quando conheceu o instrutor, teve uma boa impressão: achou o homem simpático e solícito. A partir da segunda aula, porém, ao conversarem mais e terem mais contato, as coisas passaram a incomodá-la. As conversas se tornaram cada vez mais pessoais e invasivas, com perguntas íntimas sobre sua vida amorosa. “Ele tinha idade para ser meu pai”, lembra.
Constantemente, o instrutor fazia comentários de conotação sexual sobre sua roupa e seu corpo. Em certos dias, ele dizia que gostaria de parar a aula para “ficar” com ela no banco de trás do carro. “Ele falava que eu era a aluna mais bonita e ‘gostosa’ que ele já teve, e que não conseguia me ensinar nada porque não parava de me olhar”. No decorrer dos encontros, as frases continuaram, com conteúdo cada vez mais invasivo. “Ele contava que pensava em mim quando estava em casa em momentos íntimos com a esposa”.
Apesar da recusa e dos sinais de desconforto da aluna, o instrutor insistia em pedir para beijá-la no banco de trás do veículo. Afirmava que ela não iria se arrepender, que seria diferente de tudo que já havia experimentado com os “novinhos” de sua idade. Nessas horas, ela gelava, dizia que não queria, que não podia, que não dava. A pressão e a insistência, no entanto, continuavam. Ela só queria que aquilo terminasse logo. Até hoje, Flávia teme encontrá-lo nas ruas de seu bairro, com medo do que ele possa fazer.
O caso acima relatado não é uma exceção – e muito menos parte de uma minoria. Em autoescolas do Brasil inteiro, milhares de garotas são vítimas de algum tipo de abuso, seja ele de caráter sexual, moral ou psicológico, por instrutores das aulas práticas. Em pesquisa** realizada online com 1,6 mulheres, majoritariamente da região sul e sudeste do Brasil, 63% (mais de mil participantes) relatam a ocorrência de pelo menos algum dos tipos de assédio durante o treinamento nestas instituições. As histórias, contadas em anonimato, revelam traços e comportamentos em comum: passadas de mão, cantadas, insinuações, comentários de cunho sexual, pressão psicológica, desrespeito e humilhação. A liberdade das alunas frequentemente é cerceada, e o espaço de cada uma, invadido, como lembra a ex-aluna Clara*: “Meu instrutor falava tanta besteira que, enquanto ele dirigia, eu fingia que estava dormindo. Em uma dessas vezes, ouço um clique da câmera do celular: ele estava tirando uma foto minha”.
Cinto sem segurança: as vítimas e a cruel realidade
Quando se trata de autoescolas, é comum falar da burocracia que envolve o processo de aquisição da carteira de motorista ou da corrupção que circunda o meio. No entanto, pouco ou nada se fala sobre os abusos sexuais que são frequentes nas aulas de direção. Basta perguntar por aí: a maioria das pessoas conhece histórias como as de Flávia e Clara, mais ou menos com o mesmo teor e as mesmas características, e provavelmente com o mesmo final – a aluna aguenta os abusos com medo de denunciá-los, passa na prova e “deixa para lá”, quase sempre traumatizada demais até para dirigir. De fato, a questão é tão pouco discutida que o próprio Detran não tem registros do número de assédios, até porque as denúncias são raras: entre as jovens entrevistadas, apenas 9% afirmam ter reclamado nas autoescolas sobre o comportamento dos instrutores.
Os números assustam, mas são reflexo da realidade. E a realidade é obscura e violenta, como mostra a história de Júlia*, uma das mais alarmantes. Enquanto fazia suas aulas de direção, ela foi coagida a ter relações sexuais com seu instrutor, sob ameaça de não passar no exame. “Ele disse que não ia me deixar fazer a prova. E eu não tinha dinheiro para fazer mais aulas”, lembra ela. O professor também a levava para outra autoescola e a obrigava a realizar sexo oral nele e em um outro instrutor: “Era horrível. Ele me estuprava dentro do próprio carro”. A jovem conta, também, que não foi a única. Segundo ela, outras meninas, conhecidas suas, passaram pelo mesmo processo com o mesmo instrutor, tudo acobertado por um sistema de chantagem, medo e culpabilização da vítima. Além de Júlia, outras 22 mulheres que responderam à pesquisa foram vítimas de violência sexual.
Assim como Flávia, Clara e Júlia, Mariana também está entre as mil mulheres participantes do estudo que sofreram algum tipo de abuso em autoescolas. Na segunda aula de direção, o instrutor que a acompanhava colocou a mão em sua coxa. Ela rapidamente a retirou: “Falei que não era assim, que aquilo era uma relação estritamente profissional. Ele ficou ‘puto’”. O homem passou a humilhar e perseguir a garota, afirmando que ela nunca conseguiria passar no exame. Neste momento, ele avançou e tentou beijá-la à força. Em choque, Mariana tentou empurrá-lo. Felizmente, naquele instante, um conhecido da jovem passava na rua e a ajudou.
Apesar da crueldade e da grande quantidade dos casos, pouco se divulga sobre as formas de proteção às alunas. Uma delas é a possibilidade de levar um acompanhante nas aulas práticas, tanto nas noturnas quanto nas diurnas, de acordo com o artigo 158, inciso 1º, do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), em vigor desde 1997. Outra é a demissão do instrutor e o descredenciamento da autoescola, caso a denúncia seja confirmada (ver box). Há, também, casos em que as mulheres que foram vítimas de abuso conseguiram uma indenização do valor completo do processo de aquisição da CNH, apesar de estes serem minoria absoluta. No entanto, tudo fica por baixo dos panos: para conseguir acesso a qualquer uma dessas informações, a aluna precisa, muitas vezes, insistir, brigar ou pesquisar por si mesma.
No volante: quem se responsabiliza pelos abusos?
O Departamento Estadual de Trânsito de São Paulo (Detran-SP) orienta as candidatas à habilitação que sofreram abuso sexual a registrarem boletim de ocorrência para que a polícia tome as providências na esfera criminal, e também a denunciarem o caso à Ouvidoria do órgão, para que sejam tomadas as medidas administrativas cabíveis. Em nota oficial, o Detran enfatiza que “as denúncias são fundamentais para que os casos sejam apurados e os responsáveis, punidos”.
Segundo o comunicado, nas regras que regulam o credenciamento e a atuação dos diretores e dos instrutores, consta que “os candidatos devem ser tratados com urbanidade e respeito”. Para obter tanto o credenciamento, quanto a renovação da função, os instrutores e diretores devem apresentar certidões negativas de distribuição e de execução criminal. O órgão ressalta que qualquer condenação por crimes contra a dignidade sexual, como os assédios narrados anteriormente, impede a pessoa de credenciar-se ou renovar a atuação nas autoescolas.
O curso de formação de instrutores abrange questões relativas aos princípios éticos da relação entre instrutor e candidato ou condutor, e a direitos, deveres e responsabilidade civil destes profissionais durante as aulas de direção. Em 2015, foi lançado um Código de Ética do Detran-SP, distribuído aos funcionários e à rede de parceiros, no qual há itens específicos sobre os compromissos de conduta dos parceiros credenciados.
Sinal vermelho
É importante ressaltar, também, que 13% das entrevistadas (cerca de 210 meninas) relataram algum abuso por parte do examinador do Detran, além dos assédios dos instrutores, como lembra Giovana*: “No dia da prova prática, o examinador se aproveitou da situação para me cantar. Disse que gostava de mulheres como eu, com o meu tipo de corpo, e que por já estava ‘grandinha’, não tinha problema ele me dizer essas coisas, entre outras frases constrangedoras”. Carla* passou por algo parecido: “Estávamos todos no carro, esperando o início da prova. O examinador viu que minha amiga estava nervosa e a obrigou a dar seu número do telefone para ele. Depois, disse que trabalhava na delegacia e que ela poderia ir visitá-lo depois do exame”.
De acordo com Carlos*, instrutor de uma autoescola de São Paulo, os professores são treinados por empresas conveniadas ao Detran, onde são ensinados todos os trâmites para poder ministrar uma aula, seja ela teórica ou prática. “As exigências para ser instrutor são: ter categoria D de habilitação (condutor de veículos cuja lotação exceda oito passageiros, além do motorista) e ensino superior”, relata.
Sobre a ocorrência de assédio sexual, a instrutora Mônica* afirma que, desde que passou a exercer a função, já presenciou dois casos de alunas que trocaram de professor após o abuso. “Na maior parte das vezes, as mulheres preferem ter aula com outra mulher, pois se sentem mais seguras”, conta. A própria instrutora também já foi vítima durante as aulas: um aluno dizia ficar “muito excitado” ao seu lado, chegando a tentar agarrá-la dentro do carro. Mônica relata que todos os instrutores respondem ao Código Penal e que o órgão que pode oferecer auxílio é a Corregedoria do Detran, recebendo as queixas das alunas. Mas, para que seja formalizada, é necessário que a jovem faça um Boletim de Ocorrência, seguido de uma reclamação sobre o professor na própria autoescola.
Procurado, o Sindicato das Autoescolas afirma que é contrário a qualquer tipo de abuso por parte dos profissionais da empresa. Nos casos de assédio, “as autoescolas respondem diretamente ao Detran-SP, que é o órgão credenciador e fiscalizador das referidas empresas, conforme preceitua o artigo 3º da Resolução 358/10 do Contran”, diz a instituição. Assim como o Detran, o Sindicato orienta as vítimas a denunciarem qualquer situação que venha a caracterizar abuso de conduta sexual ou moral à Delegacia de Polícia mais próxima.
Embora o Detran e o Sindicato das Autoescolas aconselhem a denúncia, nem sempre isso parece dar frutos. Na pesquisa, apenas 4,7% das autoescolas demitiram o instrutor, enquanto 26% trocaram o professor sem puni-lo. Mas, em 51% dos casos, as jovens disseram que nenhuma providência foi tomada, como lembra Ana Paula*:“Muitas vezes, o instrutor dizia que queria fugir comigo, que eu era linda. Tentava mexer no meu cabelo. Quando eu denunciei, a autoescola não fez nada”. Em outros casos menos frequentes (4% do total), as instituições acusaram as próprias vítimas pelo assédio, alegando que isso ocorreu por causa das roupas que usavam ou por seus comportamentos.
É importante ressaltar que a maior parte das garotas teme fazer qualquer denúncia formal ou falar sobre o ocorrido com a família. Isso ocorre, principalmente, por muitas delas terem receio de possíveis atitudes agressivas do instrutor após a reclamação, como relata Alessandra*: “Pedi ao meu instrutor me levar a um lugar mais calmo para dirigir, pois ainda estava insegura. Ele respondeu dizendo ‘é bom que dá para te estuprar e ninguém vê’. Fiquei sem reação. Não denunciei porque fiquei com medo, já que ele sabia onde eu morava”. Catarina*, aluna de outra autoescola, chegou a ser ameaçada depois do abuso: “Um dia, o instrutor tentou forçar um beijo. Quando eu reagi negativamente, ele passou o resto da viagem dizendo que era policial militar, que sabia onde eu morava, e contando como uma aluna que o denunciou se deu mal”.
Capotando: a culpabilização da vítima e os estragos psicológicos
Ao sofrer uma série de abusos sexuais durante as aulas práticas, Flávia (cuja história abriu esta reportagem) se sentia impotente para tomar qualquer atitude contra o instrutor e a autoescola. “Eu tinha muita vergonha disso tudo e, na época, acreditava que parte disso podia ser minha culpa, por estar usando shorts/saia”, conta. A partir de então, ela começou a ir de calça e blusas mais fechadas para ver se reduzia ou não os comentários. Mas não, era até pior: ele perguntava por que a jovem estava com roupas desse jeito e ela inventava qualquer desculpa, que estava atrasada e pegou qualquer peça, por exemplo. “Nada adiantava: ele chegou a dizer que conseguia ver através das minhas roupas, entre outros comentários ainda piores”. Arielle Sagrillo Scarpati, psicóloga especializada em casos de violência sexual contra a mulher, explica: “O assédio constrange, humilha e a amedronta. Não é incomum, por exemplo, que mulheres restrinjam suas condutas, escolhas e liberdade por medo de sofrer algum tipo de abordagem ou retaliação caso ela reaja”.
De acordo com Scarpati, o comportamento de Flávia é bastante recorrente entre as jovens vítimas de abuso ou violência sexual. Sentir-se culpada pelo assédio sofrido é resultado de uma cultura machista presente na sociedade, a qual penaliza a mulher duplamente em situações em que é colocada como submissa aos agressores. “A ideia de denunciar acaba fazendo com que a vítima reviva a situação e se pergunte sobre o quanto ‘vale a pena’ passar por todo o processo para, no fim, ser questionada sobre sua responsabilidade”, reitera a psicóloga.
Frente à sociedade, é comum que a mulher que tenha passado por um abuso sexual não seja levada a sério enquanto vítima. Perguntas como “será que, lá no fundo, ela não estava querendo?”, “se não queria, por que se vestiu daquele jeito?” ou ainda “por que ela não fez nada para evitar isso?” só servem para culpabilizar a vítima e tirar a importância da experiência pela qual ela passou. Minimizar o ocorrido também é comum, como lembra Clara: “Eu contei para a minha mãe, mas acho que ela não entendeu muito a gravidade da situação e como eu tinha ficado abalada com isso. Ela ficava triste por me ver daquele jeito, mas falava para eu continuar, dizia que ia passar logo”. Sobre a questão do apoio, Scarpati reforça: “É importante que a gente entenda que cada mulher vai vivenciar a violência de uma maneira singular e daí a importância de que cada vítima possa ser acolhida e compreendida em sua vivência particular da violência”.
A vivência é particular de cada vítima, assim como as consequências psicológicas. Mas, nessas últimas, existem alguns padrões. Segundo a terapeuta, os estragos causados por uma situação de abuso em geral vão muito além de não passar na prova do Detran, podendo culminar em “quadros de transtornos psíquicos e alimentares, tais como anorexia e bulimia, fobias, ansiedade, prejuízo da concentração, transtornos de pânico, distúrbios do sono, depressão e sentimentos de culpa. Além disso, algumas mulheres também tendem a se queixar de problemas com a própria sexualidade, dores de cabeça, transtornos de ordem gastrointestinais e/ou dores crônicas”. A lista continua quase infinitamente, com tantos efeitos colaterais quanto qualquer trauma dessa magnitude pode trazer.
O suporte às mulheres que sofrem qualquer tipo de abuso, seja ele de caráter sexual, moral ou psicológico, é fundamental para que elas se sintam fortes para denunciar, em vez de guardarem para si o sofrimento decorrente dessas situações. E, para diminuir o número de abusos em qualquer lugar, a mulher precisa estar ciente: a culpa é do agressor, e não da vítima, como conclui Scarpati: “Precisamos tornar esse debate público. Precisamos deixar essas mulheres saberem que não estão sozinhas, que não são responsáveis pela violência que sofreram e, principalmente, que elas podem sim fazer algo a respeito”.
* Os nomes foram alterados para proteger a identidade dos entrevistados.
** Levantamento online realizada entre os dias 6 de outubro e 8 de novembro de 2015, com participação de 1614 mulheres. O questionário trouxe perguntas sobre a ocorrência de abuso sexual, psicológico e moral durante as aulas práticas em autoescolas e disponibilizou um espaço para as participantes relatarem suas histórias pessoais.
Freio de mão: como denunciar?
Segundo a nota oficial do Detran de São Paulo, o primeiro passo para fazer uma denúncia é o registro do boletim de ocorrência em qualquer delegacia, tanto nas comuns quanto nas Delegacias da Mulher (onde há atendimento especializado). Depois, é importante registrar a queixa contra o instrutor na Ouvidoria do Detran.SP, que pode ser acessada pelo portal do departamento.
A defensora pública Ana Paula Lewin, coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, ressalta que a denúncia após o assédio não depende de provas, mas “é importante apresentar alguma comprovação, já que será a palavra da vítima contra a do agressor”. Vídeos, fotos, prints de trocas de mensagens e testemunhas (presenciais ou que saibam do ocorrido) são alguns exemplos de provas.
Depois disso, o Detran pode abrir um processo administrativo para averiguação do assédio. Como punição, pode ocorrer o descredenciamento do instrutor, dos diretores (geral e de ensino) e da autoescola, conforme a apuração das respectivas responsabilidades, caso o abuso seja comprovado. Ainda de acordo com a nota, “se, ao longo do processo administrativo, forem constatados indícios de práticas criminosas, o Detran.SP encaminha para as autoridades competentes”.
A defensora lembra também que é possível pedir orientações no Disque 180, nos equipamentos especializados de atendimento à mulher que alguns municípios oferecem ou no Núcleo da Mulher da Defensoria Pública, cujo principal papel nestes casos é o de orientação e de acolhimento das vítimas. “Porém, para alguns crimes (como o crime de injúria), além do Boletim de Ocorrência, é necessário que a vítima entre com uma queixa-crime, para que haja o processo criminal. E, nesta forma de processo, a Defensoria atuará processualmente em favor da vítima”, conclui a defensora pública.
Assédio x Estupro
Com a sanção da Lei nº 10.224 em maio de 2001, o assédio sexual passou a ser considerado crime e agora faz parte do Código Penal Brasileiro. Segundo o texto, a definição de assédio sexual é: “constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função”. A pena para quem cometer o crime é de detenção de 1 a 2 anos.
Já o estupro é crime hediondo, sujeito à pena de 6 a 10 anos de reclusão para o criminoso, aumentando para 8 a 12 anos se há lesão corporal da vítima ou se a vítima possui entre 14 a 18 anos de idade, e para 12 a 30 anos, se a conduta resulta em morte. De acordo com o Código Penal Brasileiro, em seu artigo 213, , a definição de estupro é: “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”.
Por Helô D’Angelo e Heloisa Aun
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