Banalização da violência e a senilidade do machismo, por Samira Bueno

29 de setembro, 2019

No último dia 22 o programa de Silvio Santos achou boa ideia promover um concurso de miss com crianças, algumas de 7 ou 8 anos. Após as meninas desfilarem de maiô, o apresentador disse “agora, vocês do auditório, que estão com o aparelhinho [de votação], vão ver quem tem as pernas mais bonitas, o colo mais bonito, o rosto mais bonito e o conjunto mais bonito“.

(Folha de S. Paulo, 29/09/2019 – acesse no site de origem)

O dono de uma grande emissora de televisão resolveu fazer um desfile de maiô com crianças no país que registrou mais de 35 mil estupros infantis apenas no ano passado. No mesmo domingo em que o programa era exibido, outras 96 crianças foram vítimas de estupro, tomando como base os dados de 2018. Três em cada quatro estupros são praticados por alguém conhecido e muitas vezes da confiança da criança. Em 97% das vezes o agressor era homem. Apesar destes números serem de conhecimento público, a sexualização, erotização e espetacularização do corpo infantil seguem a todo o vapor.

Cerca de 53% de todos os registros de estupro do país têm vítimas com idade máxima de 13 anos. Mais de 16 mil vítimas tinham no máximo 9 anos. Para além das lesões físicas e imediatas que decorrem do abuso, as sequelas invisíveis são tão ou mais cruéis e podem persistir por toda a vida. Estudos indicam que crianças que vivenciaram o trauma da violência sexual apresentam problemas de relacionamento com crianças e adultos, depressão e ansiedade, distorção da imagem corporal, dentre outros problemas que afetam o desenvolvimento emocional, cognitivo e comportamental.

Na mesma semana o então radialista Gustavo Negreiros, da Rádio 96 FM, de Natal (RN), criticava a ativista ambiental Greta Thunberg por seu discurso durante a Cúpula do Clima em Nova York. Mas a crítica não foi ao conteúdo do discurso da jovem ativista, e sim ao fato dela ser, nas palavras dele, “mal-amada”, “histérica”, ao que completou: “Ela está precisando de um homem, ou macho ou uma fêmea. Se ela não gosta de homem, que ela pegue uma mulher. Ela tá precisando de sexo”.

Uma garota de 16 anos com síndrome de Asperger, um dos transtornos do espectro do autismo, que mesmo com esta condição se destaca em todo o mundo por sua luta pela preservação do meio ambiente. E a melhor crítica que um homem adulto, formador de opinião e apresentador de rádio tem a oferecer é, na realidade, um ataque vil e machista.

Também esta semana um episódio no programa A Fazenda mobilizou as redes sociais. O participante Phellipe Haagensen beijou a força Hariany Almeida, que prontamente o reprovou e inclusive ameaçou denunciá-lo. O apresentador Marcos Mion está sendo cobrado nas redes sociais sobre qual será o encaminhamento que a emissora dará ao caso.

O que os três episódios têm em comum? Eles ilustram bem o que é o dia a dia de meninas, adolescentes e mulheres, e como a desigualdade de gênero está na raiz de uma cultura machista que gera práticas discriminatórias e violentas que afetam milhões de meninas e mulheres em todo o mundo. Uma pesquisa produzida pelos Instituto Avon e Locomotiva perguntou aos brasileiros se havia desigualdade entre homens e mulheres em nossa sociedade. Para 88% isso era verdade. Curiosamente, apenas 14% dos respondentes se consideraram machistas. O machismo existe, mas o problema é sempre o outro.

A violência é uma das faces mais visíveis da desigualdade de gênero em nossa sociedade, mas está longe de ser exclusiva. Se as mulheres representam 51,7% da população brasileira, nossa representação está longe de ser equânime. No mercado de trabalho os últimos dados do IBGE mostram que mulheres ganham em média 20,5% menos que os homens, mesmo com maior grau de escolaridade. Olhando para as lideranças de grandes empresas, mulheres representam 3% nos cargos de CEO. Na Câmara dos Deputados apenas 15% das deputadas são mulheres, no Senado 16% das cadeiras são ocupadas por nós.

Em tempos de lacração e busca incessante de cliques e audiência, muitas destas violências vão sendo naturalizadas ou, pior, chamadas de “mimimi”. Mas é justamente por acharmos normal crianças desfilando de maiô que os estupros não param de crescer. É por sermos coniventes com os “beijos roubados” e ofensas verbais que a violência doméstica continua em alta. E é porque deixamos que estas imagens e discursos invadam as nossas casas todo os dias que milhares continuam sendo vítimas de feminicídio. Nada disso deveria ser normal.

Por Samira Bueno

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