(El País, 29/01/2015) Eles. Eles assinam seus crimes com uma bandeira alvinegra que penduram nos lugares que atacam; nos edifícios, veículos ou ao lado das pessoas que transformam em cinza e fumaça, esse cinza bokoharam, marca registrada da casa. A mesma tonalidade dos vestidos – muçulmanos, dizem – que impuseram a suas vítimas mais famosas, as 276 meninas sequestradas em Chibok (Estado de Borno, Nigéria), em abril de 2014, tal como se vê em uma fotografia de impacto mundial. É uma massa de mulheres sem matiz, somente rostos, uma ou outra mão, nenhuma forma perceptível de corpo. Sentadas. Caladas. Dominadas.
Você. Você se chama Mary Ussman ou Rebecca Luka… e anda como qualquer garota africana pobre e precavida, pelos mesmos caminhos e aldeias. Você se move entre o sufoco do ar do Sahel, esse pó vermelho sangue da terra, o picotado das árvores dos bosques, a confusão de mercadinhos e os carros desengonçados que cruzam o seu caminho. Sai de sua casa a cada manhã, pensando em seus assuntos (problemas de adolescentes, provas de hoje…), vestida com o uniforme escolar; esse verde ou azul habitual dos colégios africanos, se a escola for muçulmana ou cristã. Não existem distinções aqui, e sim convivência. A religião em muitos lugares da Nigéria não é assunto, nem problema.
Você vive sua vida de menina.
Mas todo o arredor, no Nordeste, o território em que vive, está em estado de emergência.
As reféns de Chibok não o sabem, seguramente. Mas seu destino foi escrito em um dia de 2002 quando o Boko Haram foi criado, mais uma seita de homens fanáticos, insurgentes como os do Al Shabab, Ansar Dine, ISIS (hoje Estado Islâmico)…, com a ideia de implantar a Lei e o Estado Islâmicos. O ocidental, o objetivo.
Não é a primeira vez que eles raptam e matam e explodem e nem será a última, como bem sabem há muito os quase 170 milhões de habitantes desse país, o maior produtor de petróleo, a maior economia do continente, um dos mais corruptos, e dos que mais pobres acumula em seu território: 70% da população; 6 milhões de garotas que não vão para a escola. Os políticos locais, nacionais e internacionais também sabem muito bem disso, eles que se omitem (ou não) sobre o terror de acordo com o momento e a conveniência.
Na capital Abuja também sabem, onde eles explodiram prédios em um dia de Ano Novo; colocaram fogo em carros na passagem de festejos, lançado bombas em sedes de Polícia e das Nações Unidas…. No mesmo dia de seu sequestro, queimaram um depósito de ônibus. Dezenas de veículos transformados do vermelho ao negro da fuligem infernal.
Eles são sanguinários. Tanto que poucas semanas antes de irem atrás de você, garota de Chibok, atacaram um colégio masculino de Yobe State, onde seu líder, Abubakar Shekau, antes estudante de teologia e agora assassino em nome de Deus, veio ao mundo em um dia dos anos 70. Ele mesmo, vale pensar, poderia ter sido vítima nas mãos de outro grupo violento qualquer. Mas não, já se vê, esse radical entre radicais. Também não tem pudor em colocar bombas em mesquitas repletas de fiéis (julho de 2012, Maidguri), com a ideia de atacar os mais moderados do Islã (e matar um de seus maiores líderes em Borno, El-Kanemi), aos que o contradizem e pedem para que ele cesse a violência.
Quatro semanas depois do rapto Shekau aparece em um vídeo, impecavelmente vestido de branco de negro, segurando uma arma, com gorro e barba bem cuidada. Leva uma vida boa. E fala enlouquecido, em hausa, com uma cólera que uma religião como tal nunca deveria permitir. Lança vitupérios contra os males do Ocidente. A mulher sempre como alvo. Você e outras, a metade das raptadas, aparecem em imagem. “Irreconhecíveis”, dirão depois alguns pais, debulhados em lágrimas, ao The New York Times.“Deveriam estar casadas e não na escola”, vocifera o líder antes de ameaçar vendê-las como escravas, como se fossem butim de guerra.
Os garotos de Yobe também foram retirados aos gritos do colégio; colocados em fila e mortos a tiros, cinquenta e nove deles. Depois deixaram que o fogo fizesse com gosto seu trabalho no edifício. Piromaníacos, poderíamos dizer, sempre deixam tudo em chamas, até reduzi-lo a nada; lá arderam, até mesmo, corpos “ainda com vida”, tal como disseram os que estiveram próximos e viram e sentiram o cheiro e falaram com os jornais locais, o Premium Times, o que mais informa.
Tudo reduzido a nada, menos o medo, que nesse dia adquiriu altura estratosférica.
Você. Seu nome é Saratu Dauda ou Hasana Adamu ou Mairama Abubakar… e em 14 de abril entra na aula de sua escola pública, a Chibok Goverment Girls Secondary School, uma construção de um só andar, ocre e mal acabada como tantas na África paupérrima. Você se senta em um banco de madeira espartano, apenas uma lousa, o solo de cimento gasto, cortinas de tela pregadas nos batentes das janelas… “Pam, pam, pam, ouço disparos e digo para mim mesmo: ‘eles vieram, vieram”, contará depois o pai de uma das vítimas em um vídeo da The Associated Press.
E é isso mesmo, eles vieram, homens armados em caminhões, que te empurram e te arrastam e te levam. Por ser mulher e ser aluna, cristã ou muçulmana. Por querer ser educada. Porque seu próprio nome já indica: Boko Haram, a “educação ocidental é pecaminosa”. Ou melhor, em árabe, Jama’atu Ahlis Sunna Lidda’awati wal-Jihad, o que significa Comitê Popular para a Propagação dos Ensinamentos do Profeta e da Yihab. Tarefa ambiciosa.
“Peço a Deus que permita que minha filha regresse, ela é o meu futuro”, continua o progenitor da filha roubada. Um ato desse, roubar, que Maomé proíbe em todos os seus escritos.
E que conclusão tão simples para os seus, para quem perdeu tudo: pretender ser mulheres educadas as conduz, uma a uma, a serem sequestradas ontem, desaparecidas hoje (esse “não existir existindo” que os familiares dos entes perdidos conhecem tão bem). Seguramente violadas e vendidas, vocês já estão, a esta altura, muito além da fronteira com Camarões, Níger ou Chade.
Desde este, o mais famoso, sequestro da Nigéria, os milicianos do Boko Haram seguiram raptando sem pressa mas sem pausa: ontem vinte jovens fulani as quais pretendem trocar por gado; hoje, cem pescadores de Doron Baga, próximo do Lago Chade, os quais serão depois libertados pelas tropas chadianas; amanhã, qualquer um. E enchendo as sarjetas de cadáveres em nome do jihadismo, esse radicalismo que se nutre aqui da Al Qaeda com o acréscimo vitaminado das armas que sobraram da guerra líbia. Já são entre 4.000 e 12.000 vítimas mortais, de acordo a quem se pergunta. Mais de 1.000 mortos acumulados em somente dois meses; uma marca que lhe dá o pódio: ser o grupo terrorista mais brutal desde os atentados de 11 de setembro de 2011 nos Estados Unidos.
Esse grande apetite de destruição apareceu após o desaparecimento em custódia policial do líder Mohamed Yusuf, em 2009. Os antepenúltimos mortos foram 300 civis, nos mercados de Gamboru e Ngala. Os dois povoados convertidos, novamente, em escombros cinza bokoharam. Fuzis, granadas de mão, bazucas, machetes, usam armas de todo o formato.
A Al Qaeda do Magreb fornece material e a cada vez organizam atentados mais elaborados: cercam uma vila e a massacram. Na última, Bama, mais de cinco mil pessoas tiveram que fugir em um piscar de olhos. Maidguri, a capital do Estado de Borno, é sua base logística. Dizem que agora os que uniram-se são muitos milhares. A pobreza é o caldo; o dinheiro fácil, a gulodice é o caminho. A motocicleta, um sinal de que se aproximam: seu meio de transporte preferido. As redes sociais, em seu campo de mira.
Atuam como guerrilha, tanto e tão rápido que os soldados e policiais nada querem ou podem fazer. E às vezes é quase melhor para a população civil, sufocada entre duas águas: as forças de segurança atacaram um dia meio milhar de homens acusando-os de terrorismo sem fazer investigação alguma. Em outro, foram detidos meio milhar, simples viajantes do Sul ao Norte, suspeitos de serem membros.
Exército e governo tateiam no escuro
As duas narrativas que, assegura o pesquisador Adeolu Ademoyo, o caso Boko Haram destila: um instrumento da oposição ou um instrumento do presidente Jonathan visando a reeleição… E o temor de uma crise nacional produto de tanta violência.
Você, Ruth Amos, não sabe nada disso porque está incomunicável e presa. Ignora que abundam as críticas contra a ineficácia do exército, que não fala e não intervém e se queixa por sua vez de falta de recursos.
Você não sabe que o presidente Obama declarou guerra total ao jihadismo.
Que a União Africana propôs criar um fundo especial mundial para lutar juntos contra esse câncer que ameaça a todos.
Que abundam as manifestações de protesto nas ruas de seu país, antes e depois de cumpridos 100 dias de seu rapto, e diante dos consulados de todo o mundo e muito além, online.
Que as redes sociais ardem, desde Michelle Obama até o infinito, segurando sua foto, e voaram mensagens por sua libertação. Pedindo ação e solução.
Que o desassossego é mostrado nos cartazes: “Nigéria, o Estado falido”, “Todas as meninas somos nós”, “Sem resgate, sem voto”, “Boko Haram não é o Islã”, “A próxima pode ser sua filha”, “Tragam nossas meninas de volta”… e corre no ritmo das hashtags do Twitter.
A diferença é que enquanto a atenção mundial logo se cansa e fica mais fraca com o tempo, eles sempre perseveram.
Porque nada disso importa para o Boko Haram. Muito menos que os líderes internacionais enviem especialistas e soldados e armas, que já existam drones sobrevoando o bosque de Sambisa próximo, que coloquem um alto preço por suas cabeças, que o rosto de Abubakar Shekau, chamado de Bin Laden negro, apareça como se fosse um rapper popular nos cartazes das praças…
Eles. Eles são feitos de outra coisa. Dominam o terreno de jogo. Eles se permitem brincar com o desconcerto; agora mudaram de estratégia. Já não buscam vítimas somente nessa esquina da África subsaariana, agora querem território. Para fechar, assim, um primeiro círculo de dominação e proclamar um califado; um sem califa, pois Shekau não tem linhagem para tanto.
Infiltrados nos povoados e nos campos, chegam até onde o exército não chega. Já tomaram treze cidades no Norte da Nigéria, nos estados de Adamawa, Borno e Yobe. Fazem incursões além da fronteira, em Camarões, para pegar reféns. Quanto mais ocidentais, melhor.
Disfrutam em seus atentados. Os terroristas são atores, simulam ser pregadores e soldados. Aconteceu em Gwoza. Convocaram os homens para falar no centro de uma praça e depois abriram fogo. Um massacre de pelo menos duzentas vidas. Aconteceu em Damaturu (Estado de Yobe); atacaram um estabelecimento onde assistiam a Copa do Mundo de futebol. Muito ocidental. Era transmitida a partida entre Brasil e México. Acabou entre hurras com uma vintena de mortos.
Ganhador: eles outra vez. E o medo.
Estradas inteiras, como a de Gwoza a Maidguri, a capital de Borno, transformaram-se em “no-go road”.
Eles chamam de limpeza do território.
A morte cinza que arrasa.
Você. Você se chama Rose Daniel, dezessete anos. E voltou há pouco do sequestro diante dos olhos dos seus, nessa foto de grupo conhecida por todo o mundo. Volta transformada em massa e mancha cinza opressão. Sua mãe, seu pai, seu irmão, seu vizinho… buscam seu rosto entre as meninas. Te encontram.
E quase não te reconhecem.
Talvez um dia chegue a sabê-lo: um fotógrafo da Reuters chamado Joe Penney tentou mudar essa dupla humilhação a qual foi submetida. Tentou refazer sua dignidade duplamente tomada: o sequestro de sua pessoa e de sua imagem, ao apagar dela todo o rastro de sua personalidade, o calor da idade, a cor das roupas africanas habituais e de seu cabelo, a amplitude de seu sorriso…
Penney, enorme, devolveu seu rosto verdadeiro retratando sua mãe, Rachel Daniel, de trinta e cinco anos, junto com seu irmão Bukar, de sete, pegando uma de suas fotografias desse passado já para sempre perdido.
Porque mesmo que volte hoje, nunca mais será a mesma.
E essa é a pergunta mais repetida. “As meninas voltarão?”. Foi feita pelas famílias e pelas pessoas aos policiais, aos especialistas, aos professores, aos jornalistas… O ex-presidente do país, Olusegun Obasanjo, se atreveu a respondê-la. “Sim, voltarão, mas somente algumas… outras já se foram”, disse, omitindo o “para sempre”.
Meia centena delas (53) conseguiu fugir durante os primeiros dias. Outras quatro o fizeram em junho. Uma destas, Sarah Lawan, de dezenove anos, contou à The Associated Press, diante das famílias, como as transportaram em caminhões e as ameaçaram; como muitas poderiam ter escapado saltando do veículo como ela o fez. Mas não o fizeram. A maioria sofria de paralisia. Por horror.
E assim, quase seis meses depois de seu sequestro, as aldeias de Borno e Yobe e Adamawa permanecem destroçadas por fora, e seus habitantes feridos por dentro. Tão desesperados os moradores, que para não atrair os terroristas, quando estes matam e deixam os corpos nas ruas, decidiram mandar as mulheres mais velhas recolher e enterrar seus restos.
Sabem que somente elas estarão livres de serem atacadas, violadas, raptadas, desaparecidas…
Mães, avós, tias… anciãs trabalhando com sigilo.
Dia após dia.
Um morto após o outro.
Acesse no site de origem: Boko Haram e o terror cinza: a cor das garotas perdidas no país, por Lola Huete Machado (El País, 29/01/2015)