Em entrevista ao Boletim Violência de Gênero em Dados, a psicóloga Laureane Lima Costa fala sobre os impactos da falta de acessibilidade e de uma política do cuidado na produção de dados sobre violência contra mulheres com deficiência
É fato que a violência doméstica e familiar atinge todas as mulheres independentemente de raça, etnia, classe ou idade. Mas a intersecção do patriarcado com outras opressões estruturais como o capacitismo não só aumenta o risco de violência mas funciona como uma barreira para a denúncia e o acesso à justiça. Os impactos dessa combinação de discriminações vão desde a ausência de meios para interromper um ciclo de violência que se perpetua, como a falta de dados que possam mensurar um problema social que atinge grande parte da população brasileira.
Em entrevista ao Boletim Violência de Gênero em Dados, Laureane Lima Costa aponta que a subnotificação de casos de violência contra mulheres com deficiência tem como base dois fatores: a falta de acessibilidade, tanto na mobilidade urbana como nos serviços de proteção e assistência às mulheres, e a ausência do reconhecimento da identidade de gênero das pessoas com deficiência, fruto da intersecção do patriarcado com o capacitismo.
Laureane tem atrofia muscular espinhal, é psicóloga, pesquisadora no Instituto Cáue – Redes de Inclusão, mestra em Educação pela Universidade Federal de Jataí, doutoranda em Educação pela Universidade de São Paulo e integrante do Laboratório de Educação Inclusiva da Universidade do Estado de Santa Catarina (LEdI/UDESC).
Em sua edição de 2021, o Atlas da Violência, elaborado pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) a partir de dados do SUS, incluiu, pela primeira vez, dados sobre pessoas com deficiência. Segundo esse levantamento, a cada hora acontece um caso de violência contra pessoas com deficiência no país. A maioria das notificações são de mulheres (61%) e ocorrem no espaço doméstico (58%). Na sua avaliação, como a condição de deficiência aumenta a vulnerabilidade e agrava ainda mais a subnotificação tão comum em casos de violência contra a mulher?
Laureane Lima Costa: Os dados mostram que a violência contra pessoas com deficiência é maior contra as mulheres e no espaço doméstico, o que reproduz o cenário do Brasil para as mulheres: a casa continua sendo o espaço mais violento. E aí eu diria que não é a condição de deficiência que agrava a subnotificação dos casos de violência contra mulheres com deficiência, mas as barreiras impostas pela cultura capacitista, não só as barreiras de acesso a uma delegacia, como também as que existem no transporte. Em uma cidade que não conta com transporte público acessível, que não tem recursos de acessibilidade, como sinal sonoro e piso tátil nas calçadas, será mais difícil para essas mulheres conseguir chegar até uma delegacia. E, uma vez que elas consigam, não temos delegacias que sejam plenamente acessíveis. E, nas cidades que contam com delegacias plenamente acessíveis, parece haver uma concentração de recursos nelas e não nas delegacias em geral. Então, se tenho delegacias para as mulheres, elas precisam contar com recursos de acessibilidade arquitetônica e comunicacional. E, nesse sentido, além dos recursos de acessibilidade que já estão previstos em lei, também precisamos de formação para os profissionais que trabalham nas delegacias, pensando que cada mulher com deficiência é única, cada experiência com deficiência é única e que as pessoas podem precisar de variados recursos de acessibilidade que podem não estar previstos em lei. Então, não necessariamente intérprete de libras vai garantir acessibilidade, porque nem toda mulher surda se comunica por libras. E, se temos uma mulher surda que se comunica de outras maneiras, os profissionais precisam ter sensibilidade para reconhecer os recursos de que essa mulher precisa. Então, são as condições impostas a nós pelo capacitismo que agravam a subnotificação.
Uma outra questão é a ausência de reconhecimento da identidade de gênero das pessoas com deficiência. A combinação do que se espera das mulheres na nossa cultura patriarcal e a pressuposição de incapacidade de pessoas com deficiência em geral impedem que as pessoas reconheçam que, dentro desse grande grupo de pessoas com deficiência, temos mulheres com deficiência. Em uma cultura patriarcal que ainda associa o papel das mulheres à maternidade, ao cuidado — e aí temos também a questão da dupla ou tripla jornada de trabalho —, ou seja, em uma sociedade que ainda marca a posição das mulheres vinculando-as à maternidade e ao trabalho de cuidado, mulheres com deficiência podem ser lidas como incapazes de exercerem esses papéis e não serem, portanto, lidas como mulheres. E isso vai dificultar que se tenha perspectiva de gênero quando estamos discutindo sobre violência contra pessoas com deficiência, porque fica parecendo que é a mesma coisa e não é. Uma mulher com deficiência que sofre violência não é a mesma coisa que um homem com deficiência que sofre violência, porque o sistema de opressão que está por trás dessa violência que está sendo subnotificada é diferente para uma mulher ou para um homem com deficiência. Então, para mim, o que agrava essa subnotificação nos casos de violência de gênero são essas barreiras impostas pela nossa cultura capacitista que obstrui a participação plena das pessoas com deficiência em todos os espaços da vida comum, o que inclui uma participação plena também em uma delegacia ou em outro serviço de proteção. E a combinação de capacitismo e patriarcado também produz essa subnotificação, porque se uma mulher com deficiência sofre violência doméstica, isso pode ser entendido apenas como uma violência por motivo de deficiência, e aí se apaga como o gênero interfere nessa dinâmica.
Apesar de a Lei Maria da Penha ter sido aprovada em 2006, somente em 2019, após a aprovação da Lei 13.836, tornou-se obrigatório apontar a condição de deficiência nos boletins de ocorrência nos casos de violência doméstica. Como você avalia esse avanço?
Laureane Lima Costa: É claro que isso é um avanço porque pode produzir estatísticas e as estatísticas orientam a condução de políticas públicas. Mas precisamos considerar que só isso não é suficiente, porque, como eu disse, se não eliminarmos as barreiras que existem no transporte público, na cidade em geral e nos serviços de proteção em especial, mulheres com deficiência podem nem conseguir fazer um boletim de ocorrência. Então, é um avanço, mas não podemos perder de vista que existem coisas anteriores para sentirmos que isso é um avanço. A acessibilidade urbana, por exemplo. E, em termos de políticas públicas, uma questão importante para pensarmos sobre essa ausência de dados sobre gênero e deficiência é que é preciso considerar como a necessidade de cuidado impacta a vulnerabilidade à violência, ou a manutenção/continuidade dessa violência. Porque algumas pesquisas qualitativas apontam que mulheres com deficiência que dependem de relações de cuidado para viver tendem a não denunciar a violência, porque denunciar a violência implica perder o cuidado. E, inclusive, para muitas mulheres com deficiência, perder o cuidado implica perder a sobrevivência. Então, nesse sentido, precisamos ainda descobrir como produzir dados sobre gênero e deficiência pensando também na necessidade de cuidado, porque, mesmo não tendo dados quantitativos sobre isso, os dados qualitativos já nos indicam que uma das políticas públicas que precisam ser construídas para que as mulheres com deficiência estejam mais protegidas é uma política pública do cuidado ou da assistência pessoal. Se essas mulheres puderem contar com cuidadores, com atendentes pessoais contratados pelo Estado para fazer as mediações de cuidado que elas precisam no dia a dia, elas terão, então, condições de denunciar que um familiar ou um companheiro cometeu violência contra ela. Isso não será possível se esse profissional não estiver disponível, porque muitas vezes esse familiar ou companheiro que agride é também a única pessoa que cuida.
Então, os dados que já conseguimos acessar podem nos indicar, por exemplo, que é fundamental que programas como o “Maria da Penha nas Escolas”, que já existe em algumas cidades do Brasil, estejam sensíveis para inserir também a pauta da deficiência. É preciso que as pessoas que conduzem esses projetos de prevenção nas escolas contemplem a intersecção de gênero e deficiência e outros marcadores sociais também.
Para finalizar, na sua opinião, como a falta de dados sobre gênero e deficiência impacta a construção de políticas públicas mais efetivas para mulheres com deficiência?
Laureane Lima Costa: Se não temos esses dados fica aparecendo que o problema não existe, que mulheres com deficiência não sofrem violência, que mulheres com deficiência que dependem de cuidado para viver não sofrem violência, que as relações de cuidado que se estabelecem no dia a dia são sempre relações de cuidado, de emancipação, e não relações de violência também. Então, tudo isso não aparece, não vem à luz, e aí o problema não existe e a gente fica sem condições de pensar em soluções.
Sobre o Boletim Violência de Gênero em Dados
Realizado com apoio do Consulado Geral da Irlanda em São Paulo, o Boletim Violência de Gênero em Dados divulga mensalmente uma seleção de estatísticas e dados de estudos realizados por órgãos governamentais, institutos de pesquisa e organizações da sociedade civil, sobre os diversos tipos e formas de violência contra as mulheres, com curadoria da equipe do Instituto Patrícia Galvão. Saiba mais.