- Conferência em Brasília reuniu representantes de entidades nacionais e aldeias minúsculas para pensar futuro das mulheres no país
- Aborto criou saia justa para governo federal, que não prometeu inclusão de proposta em plano final
Quarenta mulheres, grande parte delas com lenços verdes amarrados aos pescoços, se reuniram na noite de 29 de setembro no mezanino de um centro de convenções em Brasília. O objetivo era definir a posição do grupo nas propostas sobre aborto apresentadas para as delegadas da 5ª Conferência Nacional de Políticas para Mulheres.
Era o fim do primeiro de três dias do encontro com quase 5.000 mulheres para indicar os rumos das políticas públicas sobre desigualdade de gênero no Brasil pelos próximos anos. O documento que seria aprovado dois dias depois, em 1º de outubro, é a base do Plano Nacional de Políticas para Mulheres do governo federal, ainda não finalizado.
Naquela noite, grande parte do público já tinha se dispersado, embarcando em ônibus fretados por governos estaduais ou carros de aplicativo rumo a outras partes da capital federal. Trabalhadores da organização do evento arrastavam paredes móveis para dividir o imenso auditório em uma série de pequenas salas que receberiam as reuniões temáticas do dia seguinte.
Em todo o prédio, porém, pequenas turmas, como aquela com lenços verdes (o símbolo da luta pela descriminalização do aborto na América Latina), discutiam as propostas apresentadas pelo Ministério das Mulheres e articulavam para emplacar suas prioridades no documento final.
As presentes se dividiam entre delegadas e observadoras. As primeiras foram escolhidas em conferências prévias para representarem movimentos sociais, governos estaduais ou órgãos do Poder Executivo federal. As segundas pertenciam a organizações com algum interesse em influenciar os rumos das políticas de gênero no país.
Dessas conferências também saiu o caderno de propostas, elaborado pelo Ministério das Mulheres, condensando os eixos que seriam discutidos ali. Como é de se imaginar, para criar um plano de políticas que abranja metade da população brasileira, são necessários muitos eixos: trabalho, cuidado, saúde, representação política e violência eram alguns deles.
O grupo do mezanino definiu que sua prioridade seria a defesa da descriminalização ampla do aborto no Brasil. A ideia não estava entre as apresentadas pelo Ministério das Mulheres. No caderninho distribuído pela organização do evento, apenas 1 das 24 propostas do eixo “saúde sexual e reprodutiva” mencionava o aborto, fazendo referência apenas aos casos já previstos na legislação.
As mulheres decidiram usar um artigo do regimento interno da conferência, que permitia ajustes de texto, para propor o afrouxamento das leis sobre interrupção da gravidez. Elas esperavam que houvesse tensão no dia seguinte, já antevendo que a nova redação enfrentaria resistência de outros grupos de delegadas durante a votação.
A semelhança com o Congresso Nacional não é mera coincidência. Nos três dias da 5ª Conferência Nacional de Políticas para Mulheres, eram intensas as articulações nos bastidores. Delegadas percorriam o centro de convenções com pranchetas nas mãos, colhendo assinaturas para infinitas moções.
Eram aptas a votar 2.214 delegadas, entre representantes de associações de bairro e movimentos sociais nacionais, como a CUT (Central Única dos Trabalhadores), enviadas de governos à direita, como o do paulista Tarcísio de Freitas (Republicanos), e de associações indígenas ou LGBTQIA+.
“No meu bairro teve uma conferência livre, em que reunimos 20 mulheres da comunidade para falar sobre as dificuldades, sobre as expectativas, sobre melhoras na comunidade”, explica a gaúcha Fernanda Moraes Siqueira, 42. Ela representava o clube de mães de seu bairro em Caxias do Sul (RS).
Ao lado dela estava Rosenei da Rosa, 29, da aldeia indígena Forqueta, no mesmo município gaúcho. A delegada representava a comunidade de apenas cinco famílias, realocada depois que terras que pertenciam a eles foram utilizadas para a duplicação de uma rodovia.
Já a estudante pernambucana Roberta Pontes circulava pelos corredores pedindo assinaturas para uma moção para a Ubes (União Brasileira dos Estudantes Secundaristas). Parte do processo que fazia a conferência ganhar ares de gincana, as moções são abaixo-assinados sem efeito prático, que funcionam como um recado político da conferência para o governo e a sociedade.
A de Roberta pedia medidas contra a violência nas escolas. Para ser apresentada perante o plenário, cada moção precisava da assinatura de pelo menos 10% do total de votantes. Isso tornava impossível andar dois minutos no saguão do evento sem ser parada por uma mulher segurando uma prancheta.
Conforme o esperado, a quantidade de mulheres ultrapassava, e muito, a de homens, criando uma versão ampliada de uma conhecida desigualdade: a da fila do banheiro.
Para compensar, outro gargalo de gênero, muito mais sério, é claro, foi resolvido pela organização. Mulheres com filhos tinham à disposição uma cuidoteca, política que está inserida no âmbito das ações do Plano Nacional de Cuidados. Durante os três dias, a Folha não viu a sala vazia nenhuma vez.
O evento registrou duas ocorrências de racismo e uma briga física entre delegadas transexuais e ativistas de movimentos antitrans —uma das quais, segundo o Ministério das Mulheres, havia se registrado com o nome de outra mulher para participar. A confusão terminou com a expulsão da representante do grupo feminista radical.
Apesar da diversidade de posições, das disputas internas e articulações nos bastidores, a maior parte das propostas foi aprovada na assembleia final por mais de 90% das delegadas.
Uma das exceções foi a legalização do aborto, que teve 83% de aprovação —um patamar ainda elevado, levando em consideração a posição geral da população brasileira. Segundo o Datafolha, só 17% são favoráveis ao afrouxamento da lei.
Foram escolhidas como prioritárias pelas delegadas algumas pautas com pouca probabilidade de aprovação, como o fim da escala 6×1 e a criação de cotas para mulheres em cargos eletivos —atualmente, a reserva é feita nas candidaturas, o que não se traduz no resultado final. Outras já estão nos planos do governo federal, como a implementação da Política Nacional de Cuidados, sancionada em dezembro de 2024.
A conferência deste ano tinha um simbolismo especial para o governo Lula, por ser a primeira do mandato, e também a primeira desde que os petistas deixaram o poder em 2016. Foi a gestão do PT que idealizou a criação coletiva das políticas sobre mulheres, reunindo delegadas de todo o país para definir as prioridades do Executivo.
A primeira reunião aconteceu em 2004, a segunda em 2007, e a terceira em 2011. A quarta foi aberta em 12 de maio de 2016, por Dilma Rousseff, em seu último ato como presidente antes de ser afastada pelo Senado no processo de impeachment.
Nove anos depois, Dilma comentou o episódio em vídeo enviado para a abertura do evento —a ex-presidente hoje dirige o Novo Banco de Desenvolvimento, em Xangai. “Essa conferência é mais do que um espaço de debate, é a expressão viva da democracia participativa”, disse.
“Este reencontro, quase dez anos depois, tem uma força ainda maior porque superamos um período de retrocessos, de violência política e de ataque às conquistas democráticas”, afirmou. “Lembro que a abertura da quarta conferência foi meu último compromisso oficial antes do golpe injusto contra a nossa democracia”, concluiu a ex-presidente.
O evento teve também tons eleitorais —como sempre, a disputa pelo voto feminino deve ser ferrenha em 2026. A ministra das Mulheres, Márcia Lopes, foi direta e afirmou que as mulheres não devem votar, “em hipótese nenhuma, em homens que não respeitam as mulheres”.
A principal surpresa foi a proposta de legalização do aborto, que acabou se tornando uma saia justa para o governo. Na conferência de 2004, a diretriz chegou ao plano nacional, que listou a revisão da lei penal acerca da interrupção da gravidez como prioridade. Lula assinou o documento, o que levou a um projeto de lei que nunca chegou a avançar.