Cruz, voto e prazer: temas incômodos sobre violência de gênero, Paulo Ferrareze Filho 

04 de junho, 2025 Diplomatique Por Paulo Ferrareze Filho 

A equidade de gênero, se for para ser levada a sério, exige o enfrentamento direto desses três pilares da dominação: o fundamentalismo religioso, o machismo político e a heteronormatividade compulsória

Lacan tem uma frase célebre que diz: “Que renuncie à psicanálise aquele que não está à altura de seu tempo”. Toy Story, um dos desenhos infantis mais influentes das últimas décadas, pode servir de retrato desse nosso tempo que ainda reproduz um machismo renitente. Essa animação pode ser tomada como sintoma social, já que naturaliza e reproduz não só desigualdades de gênero, mas também de raça e de poder.

Woody, o protagonista, é um boneco que representa um homem branco, cujo ofício é ser xerife, e que tem todas as insígnias de um clássico cowboy. Os cowboys são o equivalente americano dos “gaúchos pampeanos”. Em ambos os casos, são figuras estereotipadas do homem bruto, viril, que resolve problemas com armas e que silencia seus próprios sofrimentos.

Buzz Lightyear, outro protagonista, também é branco. De uma brancura reluzente como a de alguém como Elon Musk. Ainda que Buzz não mereça essa indigna comparação, ele é o representante da tecnologia, do saber, dos foguetes e da conquista espacial. O lema “ao infinito e além”, se tomado literalmente, traduz não apenas um espírito explorador, mas também uma pulsão ilimitada de domínio, típica das fantasias masculinas de onipotência.

Há também a Betty. Não tão protagonista como Woody e Buzz, ela é uma boneca delicada, branca como os demais personagens, de olhos azuis e vestida como pastora. Sua imagem encarna o ideal de feminilidade dócil, frágil e recatada, tão caro aos modelos patriarcais. Aliás, a fisionomia dela lembra a esposa de Michel Temer, que foi declarada como bela, recatada e do lar, características essenciais disso que as redes sociais têm chamado de esposa troféu.

Se a desigualdade de gênero já fica patente nessa distribuição de protagonismos, o destaque para a brancura hegemônica não é acidental. Ela participa da construção de um universo simbólico em que o poder, a razão e o palco estão reservados a homens brancos, enquanto a mulher permanece na posição de adorno afetivo ou recompensa emocional. Essas representações não apenas moldam o imaginário infantil, mas também refletem e reforçam os códigos de exclusão e hierarquização que atravessam nossas instituições sociais.

Neste Brasil que nos coube viver, país ainda estruturado sobre os escombros da escravidão, do patriarcado e da moral religiosa, não é possível enfrentar os dilemas de gênero sem tocar em temas incômodos como religião, política e sexualidade. A equidade de gênero, se for para ser levada a sério, exige o enfrentamento direto desses três pilares da dominação: o fundamentalismo religioso, o machismo político e a heteronormatividade compulsória.

Religião: erodir os fundamentalismos, pois os fundamentos são outres

Os direitos das mulheres são direitos humanos. São, portanto, direitos profanos e não dádivas divinas. Reivindicar equidade é um gesto terrestre, não celestial. É escutar seres humanos e não adorar entidades transcendentes. Nem mesmo deusas, afinal, não nos faltam mulheres de carne e osso de quem escutar e requerer reinvindicações aqui do chão das nossas desigualdades de gênero. Não nos enganemos: também as deusas, se é que existem, precisam morrer em nome da igualdade de gênero, pois esse é um assunto terreno.

Nietzsche já advertia, há mais de um século, sobre os perigos subjetivos da idolatria. Mas se seu Crepúsculo dos Ídolos anunciava a morte de Deus e dos fundamentos últimos, hoje ainda vivemos sob a luz agressiva de um sol religioso que se recusa a se pôr. Talvez os olhos fechados dos que oram aos céus, os cegue para o fato de que a Terra é brutalmente misógina, violenta, belicista e propensa ao extermínio de vulneráveis. As menininhas mortas em Gaza não parecem tirar o sono dos cristãos de bem do Brasil e do mundo.

Na Terra, o intervalo entre o sagrado e o fundamentalismo é muito estreito. Quando um livro tido como sagrado afirma que “o marido deve ser a cabeça da mulher”1, ou quando sugere, da boca do próprio Senhor, que a mulher que dá luz a uma menina é mais impura do que a que dá luz a um menino2, o horizonte da equidade de gênero se afasta atrás das montanhas do nosso tempo. Quando o portador da Palavra é também aquele que se autodeclara como o caminho, a verdade e a vida, (não qualquer caminho, verdade ou vida, mas todo o caminho, toda a verdade e toda a vida) estamos diante de um axioma extremamente autoritário e muito mais próximos de uma teocracia psicótica e totalitária do que de uma democracia inclusiva. Fundamentalismos e fundamentalistas não apenas não contribuem com a equidade de gênero, como são obstáculos históricos para a sua construção. Então, digamos sem rodeios: as religiões, não esta ou aquela, mas a própria estrutura teológica que as sustenta, funcionam como vetores de opressão de gênero. São elas, com suas morais eternizadas e suas promessas metafísicas, que perpetuam a desigualdade. Com razão Frei Beto, que lembrou que as pessoas que mais causam danos à humanidade são as que enchem a boca falando de Deus. Hitler era católico. Trump é presbiteriano. Bolsonaro usou o significante Deus para se eleger.

Desde o Gênesis, foi a mulher quem arruinou o paraíso. E talvez por isso, matar esse Deus, ao menos como significante regulador da sexualidade, da política e do laço social, seja o gesto inaugural mais profícuo no combate à violência contra as mulheres.

Machismo político: o que significa dizer a uma ministra de Estado “coloque-se no seu lugar”?

Outra célebre frase de Lacan é de que o “inconsciente é a política”. Claro que o inconsciente não usa tailleur ou paletó. Nem vai a debates, apesar dos atos-falhos comprometedores que vemos dos candidatos em época de eleição. Temos que entender essa frase lacaniana assim: se o inconsciente se revela por meio da linguagem, não há inconsciente sem os outros, sem outros que lancem um bebê no mar da linguagem. Desde o nascimento, somos lançados em um mar de discursos. E coisas do tipo: “Meninos são não choram” ou “meninas devem sentar de pernas fechadas”, estão nesse mar.

Fato é que a desigualdade de gênero é semeada nas palavras, antes mesmo de ser cultivada nas instituições. E é por meio da linguagem que o machismo mais torpe se revela. A diferença do tiozinho no trânsito que diz “só podia ser mulher”, para o que se diz no parlamento, é que neste podemos ter a dimensão do quanto nem mesmo a publicização, com câmeras de celular e transmissões de TV, consegue refrear o machismo virulento de alguém que diz, para uma ministra de Estado, “ponha-se no seu lugar”, depois que ela pediu apenas para ser tratada com respeito. O episódio com Marina Silva no Congresso faz lembrar uma frase muito potente de Simone de Beauvoir que diz: “o machismo faz com que o mais medíocre dos homens se sinta um semideus diante de uma mulher”.

Quando alguém que foi presidente da república diz, do púlpito do parlamento, “não te estupro porque você não merece”, podemos perceber a fundura do buraco em que estamos metidos. Fundura porque, apesar disso, esse alguém se torna presidente de um país com mais de 200 milhões de pessoas. A naturalização do sintoma que permite separar corpos entre estupráveis e não estupráveis é a cereja podre do bolo e também podre da misoginia política. Da mesma forma que esforços pelo rótulo de “imbrochável”, como se ereções fizessem diferença na arena política, dão provas no mesmo sentido. E nessa luta, nem Lula escapa de críticas. Não indicar mulheres para o STF, destacar a beleza de Gleisi Hoffmann ou contar publicamente sobre sua atividade sexual, fazem o barco remar para trás.

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