Declaremos guerra contra a pornografia de vingança, por Flávia Guth

10 de julho, 2016

(Metrópoles, 10/07/2016) O que Kevin Bollaert e Hunter Moore, ambos jovens, brancos, bem instruídos e norte americanos têm em comum? Condenações, pela justiça, por fomentarem o “revenge porn” (a pornografia da vingança) por meio de extorsões e roubo de identidade.

Kevin Bollaert, de 28 anos, foi considerado culpado e cumprirá 18 anos de prisão por manter site de sua autoria que tinha como foco a publicação e divulgação do chamado “pornô de vingança”, em que uma pessoa postava fotos e vídeos privados, geralmente de nudez ou práticas sexuais, a fim de difamar quem aparece nas imagens.

O website criminoso está inativo há algum tempo, mas enquanto estava no ar permitia que usuários postassem anonimamente fotos, majoritariamente de mulheres, sem o conhecimento delas, contendo informações pessoais, como seus nomes, endereços e links para seus perfis no Facebook.

Além desse domínio, Bollaert também gerenciava o changemyreputation.com, onde ele extorquia as vítimas em valores de até US$ 350 para remover os conteúdos difamatórios do outro site. A promotoria do caso afirmou que o réu conseguiu, assim, “dezenas de milhares de dólares” pelo esquema ilícito, cujo fundamento era a exposição e a chantagem.

Hunter Moore, tido por muitos como o “rei do pornô de vingança”, foi condenado a dois anos e meio de prisão por um juiz em Los Angeles, Califórnia, nos Estados Unidos. Ele também está sujeito a três anos de liberdade supervisionada depois do período e pagará multa de 2 mil dólares. Moore, antigo administrador do site IsAnyoneUp.com, hospedava fotos de mulheres nuas sem o consentimento das envolvidas, muitas vezes acompanhadas por informações pessoais, como nomes e contatos.

Como uma forma de tentar fugir de sua responsabilidade, o site se apresentava como um uma página de conteúdo gerado por usuários e permitia a publicação de material de ex-namorados vingativos. Na verdade, porém, de acordo com as investigações, grande parte do que estava hospedado vinha de contas de email hackeadas.

Em fevereiro de 2015, Hunter Moore se declarou culpado em relação às acusações de invasão de computadores sob a Lei de Fraude e Abuso Computadorizado e de furto de identidade. O co-réu, Charles Evens, contratado por Moore para invadir emails, chegou a um acordo com as autoridades e foi condenado a dois anos e um mês de prisão e mais três anos de liberdade supervisionada, além de multa.

Esses dois exemplos revelam, diante da desproporção entre uma pena e outra para fatos semelhantes, que nem mesmo a Justiça tem entendimento pacificado sobre como aplicar o direito em casos como esses.

Mas ainda que não exista unanimidade jurisdicional para esse tipo de crime, certo é que a condenação de Kevin serviu para provar um ponto: o desejo por vingança pública e a monetização da humilhação cibernética não devem ser ignoradas.

Inúmeros são os motivos pelos quais a vingança tem encontrado lugar relevante no nosso seio social. Dois desses motivos se revelam na intolerância e na incapacidade das pessoas de lidar com frustrações, dando espaço para retaliação desproporcional a qualquer ofensa sofrida.

Em tempos em que a internet e as redes sociais são os principais instrumentos de comunicação, a vingança pública adentra e garante um importante terreno de atuação. Tantos são os vídeos deliberadamente divulgados via Whatsapp e Facebook, por exemplo, em que alguém,com intenções de humilhar terceira pessoa, expõe imagens, vídeos e diálogos de modo a afrontar a moral da vítima, denegrindo-a profundamente em determinado universo social.

Mas essa vingança pública não guarda, em si, o simples desejo de humilhar a vítima. Vai além. Esse é um crime de poder. A intenção do ofensor é submeter a vítima a seu poder feroz, humilhando-a, rebaixando-a e impedindo-a de ascender socialmente por meio da vergonha.

Ultrapassando a questão psicossocial que o tema traz, é igualmente importante conscientizar as pessoas sobre as repercussões jurídicas que envolvem esse ato ilícito. O primeiro deles diz respeito à repercussão civil que a pornografia de vingança gera.

O Estado democrático Direito, como já falado inúmeras vezes nessa coluna, traça limites que orientam a política, a legislação e as relações sociais. Como consequência do estabelecimento de um Estado Democrático de Direito, os direitos humanos fortaleceram-se e ganharam notório espaço no equilíbrio do sistema jurídico brasileiro.

Em seu artigo 5º, inciso X, a Constituição eleva a inviolabilidade da intimidade, da vida privada e da honra das pessoas, assegurando o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de eventual violação.

E é exatamente por intermédio do Estado, considerando os fundamentos de um Estado Democrático de Direito, que o mundo virtual deve ser regulado, com instrumentos eficazes de fiscalização e educação social quanto à necessária responsabilidade ao utilizar qualquer instrumento de tecnologia da informação.

No âmbito penal, enquanto não houver um tipo penal específico, juízes têm utilizado da lei Maria da Penha para punir a prática, vez que qualquer exposição não consentida da sexualidade configura-se como uma violência psicológica contra o sujeito – neste caso, exclusivamente a mulher.

Para além disso, os usuários que compartilharem os vídeos e cenas de sexo podem responder por injúria e difamação, por causar dano à imagem e a honra da pessoa exposta

O marco civil da internet (Lei ordinária 12965/2014), por outro lado, foi uma tentativa de se estabelecer limites e controlar as vias virtuais fixando princípios gerais como liberdade de expressão e proteção dos dados pessoais. O texto legal abarca diversos conteúdos e áreas, impondo normas aos usuários e às empresas provedoras de internet. Evidencia-se, na legislação, uma tentativa de refrear e punir a viralização ilegal de momentos íntimos e pessoais, capazes de deixar traumas profundos e até mesmo provocar suicídio.

O texto do Marco Civil da Internet, em tese, promove uma facilitação da localização dos responsáveis pela distribuição de cenas de nudez e atos sexuais sem a autorização de um ou mais participantes.

A chamada ‘constituição da internet’ também pune o site ou o provedor de conteúdo que mantém no ar esse tipo de material, a partir do momento que ele for notificado pela pessoa exposta. O Marco Civil da Internet obriga os provedores de conteúdo – sites, redes, blogs e apps – a guardar os registros de acesso dos usuários por seis meses.

Os dados devem ser preservados “em ambiente controlado e de segurança”, de acordo com o artigo 15 do referido diploma legal. Essa obrigatoriedade de guarda de logs facilita a identificação, pela autoridade policial, do autor de um revende porn, de modo que seja possível saber quem foi, por exemplo, a primeira pessoa a divulgar o vídeo e quem deu continuidade à viralização do vídeo ou da imagem. Portanto, fica mais fácil investigar, processar e punir quem faz a postagem e quem espalha. Isso, por óbvio, em tese.

A falha é que o marco não cria um tipo penal, muito embora pavimente o caminho para a punição.

O site ou provedor de conteúdo será obrigado a retirar do ar vídeos ou imagens íntimas, postados sem autorização, depois de ser notificado pela pessoa que foi exposta ou pelo advogado dela. Do contrário, será considerado corresponsável pela “violação da intimidade decorrente da divulgação”.

Fato é que, muito embora o legislador esteja procurando caminhos para punir toda a cadeia responsável pela prática criminosa e ilegal da pornografia de vingança, a estrada ainda é longa e a luta é difícil.

Como fenômeno social construído sobre a falência dos valores morais da sociedade moderna, a Revenge Porn tem se expandido de maneira catastrófica atingindo, sobretudo, jovens mulheres. Norteado por valores seculares do machismo, as consequências experimentadas pelas mulheres em casos de exposição de material pessoal sexual são devastadoras, comprometendo a vida pessoal, profissional e especialmente emocional desses indivíduos.

Dados revelam que cerca de 80% das adolescentes entrevistadas na campanha internacional da Plan “Because I am a Girl” (“Porque Sou uma Menina”), que anualmente publica relatórios acerca da situação das meninas em diferentes ambientes e regiões do mundo, afirmaram se sentir inseguras no ambiente online. E vamos além no absurdo de toda a situação.

A sociedade julga e condena as vítimas de Revenge Porn, principalmente quando a vingança expõe o sexo da mulher. Muitos são os casos em que as mulheres abandonam seus empregos, seu ambiente escolar, mudam de cidade e até chegam ao suicídio.

Os contornos atuais do lamentável fenômeno que temos visto crescer verticalmente em nosso seio social estão longe de encontrar um fim. A pornografia de vingança nos provoca discutir sobre o imprescindível aperfeiçoamento doutrinário, legal e pedagógico para inibição e conscientização de um problema social extremamente grave.

Precisamos, com urgência, tirar esse elefante da sala e debater o problema no trabalho, nas escolas, nos clubes, nos bares. Esse pode ser, sim, o primeiro passo para uma mudança.

Acesse no site de origem: Declaremos guerra contra a pornografia de vingança, por Flávia Guth (Metrópoles, 10/07/2016)

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