Argumento de que assédio sexual poderia não ter acontecido já que Anielle Franco seguiu tratando bem o ex-ministro dos Direitos Humanos é um erro e descredibiliza ainda mais vítimas desse tipo de abuso; Silvio Almeida nega as acusações
Silvio Almeida chegou à sua reunião com o presidente Luís Inácio Lula da Silva na última sexta-feira (6) determinado a provar sua inocência. Acusado de assediar a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, o então ministro dos Direitos Humanos reuniu mensagens trocadas entre eles para corroborar sua versão, segundo O Globo. O que elas mostravam, de acordo com ele? Que a ministra o tratava bem e, portanto, não pode ter havido assédio.
O argumento de Almeida, que é acusado de assédio por várias mulheres e acabou demitido, não poderia ser mais furado. Ele reforça uma mentira bem difundida sobre as mulheres que sofrem violência sexual: que o normal é elas cortarem contato ou hostilizarem seus agressores. A realidade, porém, é bastante diferente.
Pensemos numa vítima de assédio sexual no trabalho. Ela pode denunciar o assediador, mas essa não é uma escolha fácil. Para além dos sentimentos conturbados que um abuso provoca, como insegurança e culpa, há questões práticas.
Denunciar é expor sua intimidade a pessoas que podem ser pouco empáticas, duvidar de sua palavra ou culpá-la pela violência. Se mal recebido, o relato pode colocar em risco a permanência da mulher em seu cargo. Essas preocupações ajudam a explicar porque praticamente nove a cada 10 mulheres preferem evitar a denúncia.
A enorme maioria das mulheres assediadas vai se defrontar com a decisão de permanecer ou não no emprego – o que, para as mais vulneráveis, nem chega a ser questão de escolha. Mesmo para quem pode optar, é preciso enfrentar possíveis prejuízos à sua carreira e ao seu estilo de vida, além do baque emocional de sofrer uma segunda injustiça (abrir mão de algo importante para si por conta do agressor).
A vítima que segue no emprego precisa, contudo, conviver com o colega ou chefe que a assediou ou, até mesmo, trabalhar diretamente com ele. Não é possível cortar contato nesse contexto, nem se esquivar da cordialidade na comunicação com o agressor. Como deixar de tratá-lo bem, se você não tem como se justificar aos demais colegas e superiores caso o trate mal?
Para além das questões práticas, existem as psicológicas. A psiquiatra Judith Herman, referência nos estudos de traumas envolvendo violência doméstica e sexual, já havia detectado em 1992 que mulheres vitimadas por conhecidos tendem a tratar seus agressores normalmente após a violência.
Isso porque, como ela explica em seu livro Trauma and recovery [Trauma e recuperação], aceitar que uma pessoa em quem você confiava pôde fazer algo tão terrível é psiquicamente devastador. Como mecanismo de defesa, então, muitas mulheres acabam estreitando seus laços com o agressor, em vez de afastá-lo, para reforçar seu estado de negação.
Herman não aborda o assédio no trabalho, mas, como vítimas de uma forma de violência sexual cometida por conhecidos, essas mulheres enfrentam questões similares – especialmente quando o assédio é físico.
É preciso ignorar todas essas dinâmicas para que o argumento de Silvio Almeida tenha validade. Seja ele culpado ou inocente, é assustador que o homem que esteve à frente do Ministério dos Direitos Humanos demonstre saber tão pouco sobre assédio sexual no trabalho, uma forma de violência que atinge 76% das brasileiras.