Comunidade Evangélica que abrigou indígenas durante enchente entrou com pedido de reintegração de posse para retirar família do local.
A enchente que devastou o Rio Grande do Sul, trouxe à tona situações de violência e vulnerabilidade enfrentadas por mulheres indígenas. O Conselho Estadual dos Direitos das Mulheres mobilizou uma operação de resgate de uma família indígena, composta majoritariamente por mulheres, que alegavam sofrer assédio sexual por parte da liderança masculina da comunidade. No resgate, que ocorreu no dia 11 de maio de 2024, ninguém foi deixado para trás: 53 pessoas, além de 20 galinhas, oito cachorros e três gatos, foram retirados em segurança.
Apesar de as cheias não terem atingido diretamente a comunidade Guarani-Mbyá na Terra Indígena Tekoá Anhetenguá, localizada na Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre, o abastecimento de água foi comprometido pelas chuvas. Além disso, as mulheres ficaram impossibilitadas de vender artesanato no centro da cidade, o que prejudicou sua renda e expôs ainda mais sua vulnerabilidade.
A comunicação entre a presidente do Conselho, Fabiane Dutra, e uma das mulheres da família indígena, Jäxükä rëtë, foi intermediada pela cacica Kerexu Takuá, do Centro de Referência Indígena (Cria), do Rio Grande do Sul. Até então, não se sabia dos abusos. O contato inicial foi realizado a fim de possibilitar a entrega de doações, como alimentos, água e produtos de higiene. Contudo, após receberem as doações, as mulheres se sentiram acolhidas e encorajadas a revelar que as doações estavam sendo usadas como moeda de troca para atender a favores sexuais exigidos pelo líder da comunidade.
“A gente fez uma mega operação com a Brigada Militar, Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC), Defensoria Pública, OAB, e retirou toda uma família dessas lideranças jovens indígenas e as levamos para um abrigo. Entregamos, inclusive, absorventes, porque elas não tinham acesso. Naquele momento nem água havia na aldeia, estava muito precária a situação”, contou Fabiane.
A família foi levada para um abrigo da Comunidade Evangélica de Porto Alegre (CEPA), no bairro Agronomia. Naquele período de catástrofe, vários abrigos foram oferecidos por instituições religiosas. O espaço ficou exclusivo para a família indígena, por uma questão de segurança.
Pedido de reintegração de posse
Após um mês de caos em grande parte do estado, a chuva finalmente cessou, as águas baixaram, e algumas pessoas começaram a retornar para suas casas. No entanto, a família indígena não tinha um lar para onde voltar. Na avaliação das mulheres indígenas, como elas não aceitaram a situação de violência imposta pela liderança masculina, acabaram sendo expulsas da TI Tekoá Anhetenguá.
A Comunidade Evangélica, por sua vez, recusou-se a manter o abrigo até que a família pudesse ser realocada em outro território e acionou a Justiça Federal, solicitando a reintegração de posse do imóvel.
“O abrigo da Comunidade Evangélica de Porto Alegre é um centro de estudo e eles querem que saiam de lá imediatamente, só que nós precisamos de outro território para elas constituírem nova aldeia”, explicou Fabiane.
O juiz federal Bruno Brum Ribas indeferiu a tutela de urgência solicitada pela Comunidade Evangélica e propôs a conciliação entre as partes, buscando uma desocupação pacífica. Embora tenha reconhecido o direito de propriedade da Comunidade Evangélica, o magistrado ressaltou a importância da questão indígena, considerando os artigos 231 e 232 da Constituição Federal, que garantem tratamento diferenciado aos povos indígenas e reconhecem seus direitos originários sobre as terras tradicionalmente ocupadas. As negociações têm o objetivo de preservar esses direitos e encontrar uma solução consensual, evitando medidas forçadas.
“Nesse entendimento, há que se adotar as cautelas necessárias para promover a conciliação entre as partes, devendo ser chamados ao feito todos aqueles que podem agir na defesa dos interesses indígenas, de modo a garantir que a almejada desocupação ocorra pacificamente”, diz a decisão judicial.
Família quer constituir nova aldeia
Jäxükä Rëtë, a jovem que assumiu a liderança da família abrigada como cacica, relatou que as mulheres se uniram para romper com a violência que marcava sua comunidade, contando com o apoio dos homens da família, conhecidos como “guerreiros”. Embora não desejem permanecer no abrigo, a família enfatizou a urgência de encontrar um território que possibilite o cultivo e respeite seu modo de vida ancestral, um sonho especialmente acalentado pelos mais velhos. A nova comunidade formada pela família foi nomeada como Floresta sem Males.
“A gente precisa do apoio de todos os órgãos públicos que estão envolvidos na questão do povo indígena, que venham até nós para ouvir a nossa história. Ninguém sabe onde a gente está, só as pessoas que a gente conhece, sabem. Então a gente se sente muito assim, abandonado”, lamentou a jovem liderança indígena.
A família continua dependendo de doações, enfrentando dificuldades financeiras e aguardando soluções para estabelecer uma nova aldeia que atenda suas necessidades culturais e sociais. As mulheres artesãs continuam com dificuldade de vender os seus produtos na região central de Porto Alegre.
“Então, a gente está em uma luta para encontrar um território, para fazer a plantação, que é algo sagrado para a gente. A terra tem que ser de boa qualidade”, destacou Jäxükä rëtë.
Audiência de conciliação
A ação movida pela Comunidade Evangélica de Porto Alegre tinha por objetivo obter uma liminar para desocupação imediata do local, cujo pedido foi indeferido pela Justiça Federal. Na audiência de conciliação que ocorreu no dia 23 de janeiro, foi definida a suspensão do processo pelo prazo de 30 dias. Neste período, o Governo do Estado do RS deverá buscar outra área para as a família indígena.
“O acordo pode ter vários desfechos, mas o principal objetivo é encontrar uma localidade na qual essa comunidade possa ficar com tranquilidade e segurança e que atenda ao modo de vida indígena”, destacou o defensor público da União, Daniel Cogoy.
O juiz também solicitou que a FUNAI e a União Federal sejam incluídas como interessadas na ação. A Defensoria Pública da União é responsável pela defesa da comunidade indígena. O Ministério Público Federal também é parte interessada no processo.