Será mesmo que a PEC 164, de 2012, protege a vida desde a concepção ou está impondo às meninas e mulheres negras – não percamos de vista, as maiores vítimas de violência sexual no Brasil – a dor, o desrespeito, o desvalor?
Aquela história de planejar a chegada, montar o quartinho, pensar nas lembrancinhas e ter um parir, com o devido acolhimento e proteção, sabemos, não é para todas. E mesmo o “meu corpo, minhas regras”, não consegue traduzir a inegável complexidade da interrupção de uma gravidez, sobretudo quando as intersecções entre gênero e raça se colocam. Ainda assim, diretamente de seus gabinetes legislativos, não é raro que nossas Excelências insistam em esvaziar a pauta dos direitos sexuais e reprodutivos.
Em uma versão mais estratégica – posto que, nominalmente, não se fala de aborto – no último dia 27 de novembro, o placar não foi apertado na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados. Foram 35 votos favoráveis e 15 contrários para a admissibilidade da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 164, de 2012 que, ao propor nova redação para o caput do art. 5º da Constituição Federal, altera a previsão, em vigor, de aborto legal. Outorgando-se o título de protetora do direito à vida, referida PEC teve sua admissibilidade chancelada. Em outras palavras, os 35 parlamentares que deram seu aval estão nos dizendo que essa PEC reúne os requisitos da constitucionalidade, da legalidade e, ainda, da técnica legislativa.
O parecer, de meras três páginas, dá chancela para a tramitação dessa proposição legislativa que objetiva, na verdade, por meio da reforma da Constituição, distorcer a discussão jurídica sobre o aborto legal e retroceder na garantia e proteção de direitos. Com a aparência de um singelo “ajuste” de redação, para incluir que a inviolabilidade do direito à vida se aplica “desde a concepção”, anuncia um mundo de inverdades que atinge em cheio meninas e mulheres negras. Explico o porquê.
Nunca foi correto dizer que somos iguais desde o útero. Na nossa formação enquanto nação, está lá, para quem quiser ver, o estupro colonial que os senhores brancos portugueses praticaram sobre negras e indígenas. Em 2023, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, tivemos um estupro a cada 6 minutos, com 88% das vítimas mulheres e 52% negras. Ainda é importante que se diga que 76% se enquadram no conceito de estupro de vulnerável, o que nos leva à evidência de que não há qualquer exagero no alerta de que crianças não são mães.