(Valor Econômico, 07/12/2015) O privado é político. Nos anos 70, o slogan era contestado pelo movimento sindical, pela esquerda, pelos partidos democráticos e tantas outras organizações que alertavam para o risco de cisão no campo progressista. Dividia forças. Na luta contra a ditadura, não havia espaço para palavras de ordem e reivindicações feministas que introduziam, no campo da política, contradições antes dissimuladas em papéis sexuais.
Quiseram nos interditar. O argumento era o das contradições principais e secundárias e nós, mulheres, claro, estávamos no segundo grupo, que deveria esperar que tudo avançasse razoavelmente, para só então sermos ouvidas. E quiçá, contempladas.
Foram anos de resistência e determinação na construção coletiva de um quadro conceitual e analítico que rompesse nosso isolamento e não só afirmasse nossas convicções como denunciasse uma existência que nos tornava “mulheres”. Era preciso desnaturalizar e refundar a noção de família, conjugar o indivíduo no feminino.
Na imprensa, a notoriedade da tragédia de Angela Diniz, assassinada por Doca Street, içada às manchetes pela mobilização das mulheres, rompia um silêncio complacente e legitimador da violência de gênero em nome da honra. “Quem ama não mata”, um grito cujo eco mostravase à época de pouco alcance. Ele, entretanto, nos transformou por dentro.
Mas rebeldia pouca é coisa do passado. Fazer do privado coisa pública foi não só uma estratégia de visibilidade da opressão feminina na esfera doméstica, senão o caminho para a constituição de uma identidade liberta de uma referência subordinada e imperfeita, porque incompleta na sua essência. O ser mulher só ganhava forma e sentido, completude, na doação integral em prol do ideal da família patriarcal.
Por isso hoje choca o comportamento absolutamente anacrônico e humilhante de uma ex-esposa que baixa a cabeça numa coletiva, envergonhada, e tenta minimizar o que já desnudamos e denunciamos como intolerável e, agora, é, reconhecidamente, criminoso. E faz isso justamente em nome de tudo aquilo que desconstruímos e ficou para trás, já não pertence ao tempo presente, como mostra a intensa mobilização das jovens nesta primavera feminista, nas ruas e nas redes sociais.
Quem te viu, quem te vê. Mudamos as referências, abalamos a normatividade da violência física contra nós, e com isso estamos redesenhando as relações humanas. Em meio século, é uma performance invejável.
Não há caminho de volta. Os quase 5 mil assassinatos de mulheres em 2013 apontam, contudo, quão urgente é manter nas escolas e, permissivamente, por toda a sociedade o debate sobre gênero e contestar as injustificáveis assimetrias entre os sexos. É preciso informar como tais desigualdades explicam e alimentam o feminicídio. Tal como no passado, não vamos aceitar que interditem esse debate, banalizando, em nome de disputas eleitorais, atos de violência como coisas corriqueiras que ocorrem todos os dias e fazem parte da “natureza” das relações homemmulher. Não fazem.
Daí a reação aos vários projetos de lei em tramitação no Congresso, no âmbito de comissões, que buscam alterar o Plano Nacional de Educação, vedando a discussão de gênero dentro das escolas. E isso, em nome da moral. Qual? A da violência, sem dúvida, até porque um deles o 2731/2015 prevê, inclusive, pena de prisão para docentes que não se sujeitarem ao cerceamento de ideias e à censura explícita.
Tampouco vamos calar frente a mais uma ameaça de retrocesso no campo dos direitos reprodutivos. O PL 5069 quer dificultar o acesso a um aborto seguro e legal em caso de estupro e nos desautorizar até mesmo da condição de vítimas. Nossa palavra não teria valor a menos que referendada por uma autoridade! É a defesa insólita do princípio da tutelagem que viola a cidadania.
Vacilamos ali atrás, quando, ainda em 2010, durante a campanha eleitoral, a então candidata a presidente, Dilma Roussef, comprometeu-se a não levar adiante a luta pela descriminalização do aborto. O posicionamento de Dilma estava para o feminismo e as mulheres em geral, naquele momento, como a carta de Lula ao povo brasileiro esteve, para os movimentos sociais e para a esquerda, em 2002.
Negligenciamos o risco de nos tornarmos de novo questão secundária. Deu no que deu. Tal posicionamento logrou sedimentar alianças com forças espúrias e retrógradas que, nesse presidencialismo de coalizão que nos sufoca, fazem tábula rasa dos marcos de tolerância, respeito e liberdade de escolha que caracterizam sociedades democráticas e que têm pautado as demandas dos movimentos de mulheres, na sua imensa diversidade.
Enquanto isso, o aborto clandestino continua matando ou deixando sequelas físicas e psíquicas, uma prática que expressa a violação reiterada dos direitos humanos das mulheres. O aborto é delito inscrito no código penal brasileiro.
Contra mais esse abuso, após as mortes de Jandira Magdalena e Elizângela, em mãos de bandidos, em 2014, foi lançada uma petição pedindo a imediata descriminalização do aborto e a adoção da proposta formulada pelo Conselho Federal de Medicina de liberalização de interrupção de gravidez, por demanda da mulher, num prazo de até 12 semanas de gestação. Milhares de assinaturas foram recolhidas e levadas a Brasília, neste ano, por um grupo. Este foi recebido por oito ministros do Supremo Tribunal Federal. Seu presidente, ministro Ricardo Lewandowski, comprometeuse a iniciar um debate, no âmbito do Conselho Nacional de Justiça, para refletir sobre o enfrentamento dessa questão pendente, de interesse das mulheres e que se traduz, inclusive, em violência obstétrica.
Enquanto isso, o ministro da Saúde recusou-se a receber a Comissão apesar das inúmeras tratativas a este fim. Já a então ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres, Professora Eleonora Menecucci questionou a legitimidade de um movimento “espontâneo” sem institucionalidade comprovada, senão iniciativa de um grupo, com o intento de abordar um tema polêmico em conjunturas políticas conturbadas.
Nova tentativa de interdição, no caso, de uma questão que se quer fora da pauta, desta vez pelo não reconhecimento da mobilização efetiva e exitosa da sociedade civil, que consegue encaminhar pleitos sem intermediação de forças cooptadas pelo Executivo.
A diferença de tratamento e acolhida entre o Judiciário, de um lado, e os Executivos e setores do Legislativo, de outro, revela não apenas o descompasso na validação dos anseios expressos com organicidade e maturidade pela sociedade, como a tentativa de, mais uma vez, silenciar nossa indignação. Indignação essa que hoje, pela nossa persistência, estendeu-se para além do discurso feminista.
“Saímos da sombra” era outra palavra de ordem dos 70. Interdições nunca mais. Nós nos construímos no presente das contradições que nos encurralam. A hora é essa. E a rua, onde pulsa a força e a vitalidade de tantas gerações de mulheres, é nossa.
Lena Lavinas é professora titular do Instituto de Economia da UFRJ.
Acesse o PDF: Dos debates interditados à virada das ruas do feminismo, por Lena Levinas (Valor Econômico, 07/12/2015)