(Último Segundo, 22/10/2015) Projeto de Eduardo Cunha prevê obrigatoriedade de exame de corpo de delito para autorizar procedimento de forma legal
“Vida! Vida! Vida!” Com os braços para cima, batendo palmas e com sorrisos estampados nos rostos, parlamentares das bases mais conservadoras da Câmara dos Deputados celebraram a aprovação do Projeto de Lei 5069/2013, que cria uma série de dificuldades para mulheres vítimas de estupro serem submetidas legalmente a um aborto. Mas só eles e seus colegas pareciam realmente contentes.
Leia mais:
Médicos dizem que restringir aborto após estupro é ‘assustador’ (O Estado de S. Paulo, 23/10/2015)
O mundo de Cunha, por Hélio Schwartsman (Folha de S. Paulo, 23/10/2015)
Enquanto gritavam a palavra de ordem que supostamente ampara o projeto – a de proteger a vida, que, de acordo com o discurso dos defensores do PL, cuja autoria inclui Eduardo Cunha, passa a ser válida a partir da fecundação do espermatozoide no óvulo –, as duas únicas mulheres membros titulares da Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania da Casa (CCJ), responsável por sua aprovação, se mostravam desoladas.
“Este projeto é um dos maiores retrocessos do Brasil para os direitos duramente conquistados pelas mulheres. Com sinceridade, vou fazer de tudo pra derrubá-lo no Plenário da Câmara”, diz ao iG a deputada Cristiane Brasil (PTB-RJ), uma das parlamentares que fazem parte dos membros titulares da CCJ, aqueles com direito a voto – a outra é Maria do Rosário (PT-RS). Ela classifica o projeto, que ainda tem de passar pelo Senado antes de seguir para sanção presidencial, como inconstitucional.
“É deprimente observar que, numa votação desta importância, a sub-representação feminina na Câmara faz com que direitos adquiridos por mulheres vítimas da violência, presentes no código penal, corram risco de ser prejudicados em nome da religiosidade demagoga que diminui o debate em uma questão de defender a vida ou a morte, como se fosse uma coisa tão simples assim. Hoje, realmente estou chateada.”
O projeto de lei não altera os casos em que a prática é regularizada – quando a gravidez coloca em risco a vida da gestante; quando a gestação é consequência de um estupro; ou no caso de o feto ser anencéfalo. Mas cria enormes empecilhos para a realização do aborto legal, como previsto na Lei 12.845, sancionada pela presidente Dilma Rousseff em 2013.
Deputados celebram efusivamente aprovação do projeto de Cunha; assista:
A vida venceu! Aprovamos o PL 5069/2013! Veja o momento em que foi proclamado o resultado. Agradecemos a todos que nos apoiaram nesse momento crucial! #PL5069Aprovado
Posted by Evandro Gussi on Quarta, 21 de outubro de 2015
O texto prevê, por exemplo, a obrigação de exame de corpo de delito para comprovar a violência sexual sofrida pela vítima em decorrência do estupro – o que aqueles contrários a ele chamam de um segundo abuso sexual, praticado a mando do Estado. Atualmente, o testemunho da pessoa no serviço de saúde é suficiente para o procedimento, sem exigência de provas.
Além disso, o projeto pede o aumento de pena a profissionais saúde que tratarem ou mesmo informarem essas pessoas de como proceder em caso de desejo de abortar após estupro – o que pode incluir perigosamente a distribuição das chamadas pílulas do dia seguinte. Na legislação atual, se uma mulher relata ter sido vítima de estupro, recebe gratuitamente uma pílula do dia seguinte como medida para evitar a fecundação. É a chamada profilaxia da gravidez – termo que deputados da base conservadora também querem eliminar da legislação por, para eles, dar a entender que a gestação é tratada como doença.
Coordenadora-executiva da Católicas pelo Direito de Decidir, ONG que luta pela legalização do aborto no País, a psicóloga Rosângela Talib chama de absurdas as normas propostas pelo projeto, para ela, uma criminalização de todas as mulheres.
“Achar que nós, mulheres, somos um bando de mentirosas, que tudo o que queremos é sair inventando um estupro para conseguir métodos anticoncepcionais e o próprio aborto, é um completo absurdo. Os parlamentares têm o direito de defender a vida, mas não podem querer instituir o que pensam ao resto da população. As religiões são importantes às pessoas, mas são de âmbito privado. Não dá para uma visão religiosa pautar questões ligadas à moral”, critica ela.
Relator do projeto, Evandro Gussi (PV-SP) rechaça as acusações de que o texto é prejudicial às mulheres ou que possui algum viés religioso. Um dos muitos parlamentares a celebrar ao lado do Marco Feliciano (PSC-SP) a aprovação do Estatuto da Família, que visa a dificultar a concessão de direitos a casais homoafetivos, ele afirma ver a vida do feto como mais valiosa do que a de uma criança ou adulto – “pelo fato de ele não poder se defender” – e garante não ter tratado do tema com paixão, mas, sim, com “racionalidade cartesiana”.
“Surpreende-me que muitas mulheres sejam pró-aborto, até porque a maioria dos fetos é de mulheres. É estranho”, argumenta o deputado. “Defendemos a vida e não que a mulher pratique um crime ainda pior do que aquele de bandidos nas ruas deste País.”
Sem possibilidade de não ser aprovado
Conforme mostrou o iG em reportagem no último dia 9 de outubro, a aprovação do projeto já era um jogo político de cartas marcadas. Dos 66 membros titulares da CCJ, 29 fazem parte da Frente Parlamentar em Defesa da Vida e da Família, bancada conservadora que se concentra em fazer lobby contra projetos pró-aborto na Câmara – 43% da CCJ.
Além disso, a representatividade feminina, gênero diretamente afetado pelo projeto, é muito baixa na comissão, com uma proporção ainda inferior à da Câmara, onde 51 das 518 cadeiras são ocupadas por mulheres (10%).
Entre os 66 deputados titulares na CCJ, apenas dois, ou 3% deles, são mulheres. Somando os suplentes, o número cresce um pouco, com sete parlamentares do sexo feminino, ou 5,3% do total de 132 deputados dentro do grupo.
Do total dos 51 votantes na tarde de quarta-feira (21), 37 votaram favoráveis ao texto, enquanto 14 foram contrários a ele, incluindo três das cinco mulheres presentes na decisão – suplente de Décio Lima (PT-SC), Érika Kokay engrossou os votos femininos no lugar do parlamentar.
Entre as mulheres, no entanto, também houve fotos favoráveis, de Renata Abreu (PTN/SP) e Gorete Pereira (PR/CE).
Além delas e do relator Evandro Gussi, aprovaram o PL Aguinaldo Ribeiro (PP/PB), Alceu Moreira (PMDB/RS), Antônio Bulhões (PRB/SP), Arnaldo Faria Sá (PTB/SP), Bruno Covas (PSDB/SP), Capitão Augusto (PR/SP), Delegado Éder Mauro (PSD/PA), Covatti Filho (PP/RS), Fausto Pinato (PRB/SP), Francisco Floriano (PR/RJ), João Campos (PSD/SP), Juscelino Filho (PRP/MA), Marco Tebaldi (PSDB/SC), Marcos Rogério (PDT/RO), Pastor Eurico (PSB/PE), Pedro Cunha Lima (PSDB/PB), Marco Feliciano (PSC/SP), Rogério Rosso (PSD/DF), Ronaldo Fonseca (PROS/DF), Sergio Souza (PMDB/PR), Veneziano Vital do Rêgo (PMDB/PB), Alexandre Leite (DEM/SP), Delegado Waldir (PSDB/GO), Eduardo Bolsonaro (PSC/SP), Elmar Nascimento (DEM/BA), Gonzaga Patriota (PSB/PE), Jefferson Campos (PSD/SP), Laerte Bessa (PR/DF), Lincoln Portela (PR/MG), Paulo Freire (PR/SP), Sóstenes Cavalcante (PSD/RJ) e Vitor Valin (PMDB/CE).
“Percebo claramente que um dos pontos fundamentais para as bancadas religiosas é acabar com todas as possibilidades de aborto, seja de anencéfalo, vítima de violência. Para eles, a única coisa que importa é a vida que está por vir, ignorando a vida da mãe”, ataca Cristiane Brasil. “É uma coisa eleitoreira. Esses deputados querem se mostrar aos eleitores, provocar a discussão para derrubar algo que já é permitido, que os próprios deputados foram favoráveis poucos anos atrás, e tentar emplacar esses absurdos. É o retrocesso total do Congresso.”
David Shalom
Acesse no site de origem: “Dos piores retrocessos” diz deputada sobre PL que dificulta aborto após estupro (Último Segundo, 22/10/2015)