Dossiê Feminicídio: uma plataforma para dar visibilidade às mortes de mulheres em contexto de violência de gênero

08 de novembro, 2016

Plataforma digital reúne análises, pesquisas e fontes com o intuito de desconstruir estereótipos de gênero presentes na cobertura jornalística. Para especialistas, conteúdos contribuem para o enfrentamento do feminicídio no país

(Géssica Brandino/Agência Patrícia Galvão, 08/11/2016) Evitar mortes anunciadas por meio da conscientização social. É com esse desafio que o Instituto Patrícia Galvão divulgou ontem (07/11) o Dossiê Feminicídio, uma plataforma digital que reúne análises, pesquisas e fontes sobre essa que é a mais extrema forma de violência contra as mulheres. Junto à plataforma, o Instituto também lançou uma ação de comunicação nas redes sociais para resgatar as histórias de vítimas de feminicídio, usando a #InvisibilidadeMata.

O Brasil é hoje o 5º país com maior taxa de assassinatos femininos no mundo, segundo o Mapa da Violência 2015. Para a diretora do Instituto Patrícia Galvão, Jacira Melo, o feminicídio no país é “uma trágica realidade e uma questão urgente”. Diante desse cenário, o intuito do Dossiê é contribuir para o enfrentamento da violência contra as mulheres por meio da divulgação de dados e informações visando aumentar e aprofundar as discussões sobre o tema e por isso a plataforma também traz indicações de fontes especializadas para subsidiar a cobertura da mídia. “Nosso foco é disponibilizar informações qualificadas para que a imprensa faça o seu papel de ampliar o debate público e cobrar do Estado ações efetivas para o enfrentamento dos assassinatos cotidianos de mulheres por parceiros e ex-parceiros”, frisa.

Jacira Melo, diretora do Instituto Patrícia Galvão, fala do papel da mídia para o enfrentamento ao feminicídio (Fotos: Luciana Araújo)

Jacira Melo, diretora do Instituto Patrícia Galvão, fala do papel da mídia para o enfrentamento ao feminicídio, tendo a seu lado a promotora Silvia Chakian, do Ministério Público do Estado de São Paulo (Fotos: Luciana Araújo).

Compreender para evitar o desfecho fatal

A produção do Dossiê foi coordenada pelas jornalistas Marisa Sanematsu e Débora Prado, que apresentaram as ferramentas oferecidas pela plataforma a profissionais que atuam no atendimento direto a mulheres em situação de violência e a comunicadores que participaram do debate de apresentação da plataforma, realizado na Escola Superior do Ministério Público de São Paulo.

Para a construção do Dossiê foram consultadas diversas pesquisas, dados, documentos e legislações de referência. Também foram entrevistadas dezenas de especialistas de todas as regiões do país – pesquisadoras, operadores do Direito, profissionais que atuam no atendimento a mulheres, gestores, peritos, delegados, ativistas feministas, antirracistas e que defendem direitos de mulheres lésbicas, bis, transexuais, travestis e outros.

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Ferramenta digital busca aproximar conceito dos profissionais da mídia e da sociedade, reforça Débora Prado, coordenadora do projeto.

A editora executiva Débora Prado, que coordenou o projeto do Dossiê, lembrou que a expectativa é que a página seja consultada tanto por especialistas e jornalistas quanto por todos os que desejam compreender o que significa feminicídio. “Apesar de ser uma violência nomeada, com legislações em vários países da América Latina, pouco se fala sobre o que é feminicídio e o termo pouco aparece no debate público feito por meio da mídia”.

A diretora de conteúdo Marisa Sanematsu apontou que as mortes das mulheres seguem invisibilizadas tanto nas estatísticas quanto na mídia. “O que vemos é uma cobertura que quando cobre o problema do feminicídio o faz de forma rasa, apelando ao senso comum, abusando de estereótipos e invariavelmente culpando a vítima pela própria morte, o que é muito grave. A sociedade precisa discutir mais esse problema para que as mulheres não continuem morrendo dessa forma”, alerta.

O machismo mata as mulheres

Marisa explica que o que diferencia o feminicídio dos outros crimes são características muito específicas e dinâmicas muito complexas, por isso a visão de gênero é fundamental, tanto para lidar diretamente com esses crimes como ao fazer a cobertura jornalística. “É preciso procurar ver a motivação de gênero no assassinato dessas mulheres, porque às vezes ela pode não estar evidente. Na cobertura da imprensa o que se mostra é o estágio preliminar de uma investigação policial, o que é muito pouco para ter uma ideia desse fenômeno. É preciso estudar melhor esse problema para que as mulheres tenham direito à própria vida”.

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Marisa Sanematsu aponta caminhos para a qualificação do discurso da mídia sobre os assassinatos de mulheres.

 

Para a promotora Silvia Chakian, coordenadora do GEVID do Ministério Público de São Paulo, o Dossiê contribui para desconstruir conceitos que foram construídos ao longo da história e que foram normatizados no Sistema de Justiça e nas leis, tendo peso até hoje. “Na grande maioria das vezes esses crimes acontecem num contexto de relação de poder, de necessidade de perpetuação do domínio e de não respeito ao não da mulher a um relacionamento ou a um novo relacionamento. É preciso demonstrar e fazer com que a sociedade e os profissionais da mídia se apropriem desses conceitos, porque passar as informações de uma forma tão estereotipada e equivocada, muitas vezes até culpabilizando a mulher, só reforça a violência. É preciso desconstruir. Ele matou porque existe aí uma raiz cultural muito maior, relacionada ao patriarcado e ao machismo, que caminha de mãos dadas com a violência e que mata essa mulheres. Se não fosse o machismo elas não estariam mortas.”

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“Se não fosse o machismo elas não estariam mortas”, afirma promotora Silvia Chakian, que aponta que plataforma também auxiliará operadores do direito na aplicação da Lei do Feminicídio

A promotora enfatiza que a contribuição do Dossiê será importante para pontuar que estas são mortes evitáveis. “São tragédias anunciadas. Os últimos casos que tivemos foram de mulheres que morreram gritando por socorro, acionando o Sistema de Justiça e pedindo ajuda. Isso é muito mais grave e faz refletir sobre a nossa responsabilidade, sociedade e Estado, na morte dessas mulheres, que registraram Boletim de Ocorrência e pediram medida protetiva que foi negada, não por um equívoco, mas pela falta de compreensão sobre as circunstâncias que permeiam a violência contra a mulher. O Dossiê contribui muito para profissionais da mídia, mas hoje os operadores do Direito vêm cada vez mais se apropriando desses conteúdos para aprender a lidar com esses casos numa perspectiva de gênero”.

A realização do Dossiê foi possível por meio do apoio da Secretaria da Políticas para Mulheres do Ministério de Justiça e Cidadania e da parceria com a Campanha Compromisso e Atitude pela Lei Maria da Penha. A especialista Aparecida Gonçalves, que esteve à frente da Secretaria de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres da SPM ao longo de 13 anos, destacou a importância de dar visibilidade ao feminicídio. “Colocar os dados à disposição da população, dos estudantes, dos pesquisadores, professores e das próprias mulheres é fundamental, primeiro, para que as pessoas tenham consciência do fenômeno do feminicídio no Brasil. Segundo, porque é uma questão que está invisível e as pessoas precisam enxergar o que está acontecendo. Terceiro, ter consciência de que o crime de feminicídio não é apenas um assassinato, mas efetivamente um crime de ódio contra as mulheres, que morrem por serem mulheres”.

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Aparecida Gonçalves fala da necessidade de tirar o feminicídio da invisibilidade

A secretaria adjunta de enfrentamento à violência da SPM, Betânia Assis, também destaca a necessidade de falar sobre o assassinato de mulheres no contexto de gênero. “A Lei do Feminicídio dá mais visibilidade às mulheres que são assassinadas e mostra que esses não são apenas casos de homicídio. As mulheres são assassinadas não só pelos companheiros, pessoas próximas, mas também quando estão na rua. É preciso enfatizar a questão de gênero”.

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O papel da Lei do Feminicídio foi destacado pela secretária adjunta da SPM, Betânia Assis

O papel das diretrizes

Entre os materiais disponibilizados pelo Dossiê e que serviram de base para a construção da plataforma estão as Diretrizes Nacionais para Investigar, Processar e Julgar com Perspectiva de Gênero as Mortes Violentas de Mulheres – Feminicídios, documento lançado neste ano pelo Escritório da ONU Mulheres no Brasil e o governo federal com o objetivo de contribuir para a identificação e eliminação das discriminações de gênero contra as mulheres.

A especialista Wânia Pasinato, coordenadora de Acesso à Justiça da ONU Mulheres Brasil, pontua que as Diretrizes foram lançadas com o objetivo de posicionar o debate e trazer o conceito do feminicídio e que o Dossiê se soma a esse esforço ao traduzir o documento para um formato “acessível, abrangente e amplificado em diferentes vozes que se alinham num de olhar de gênero”, abrindo o documento a uma nova discussão.

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“Não se reconhece o menosprezo e a discriminação de gênero como causa da morte dessas mulheres nos diferentes contextos em que elas ocorrem no país”, afirma Wânia Pasinato, da ONU Mulheres. Especialista destaca importância do Dossiê para concretizar aplicação das Diretrizes sobre Feminicídio

“Esse documento tem que ser vivo, tem que ser apropriado, utilizado e transformado e o Dossiê também proporciona isso ao permitir que se ajude a construir o conceito do feminicídio, transformar a visão sobre essas mortes e ver que para além da violência doméstica e familiar, as mulheres também estão morrendo em outros espaços e contextos e aí temos toda a ideia de menosprezo e discriminação para ser construída, porque ela ainda não é conhecida. Não se reconhece o menosprezo e a discriminação de gênero como causa da morte dessas mulheres nos diferentes contextos em que elas ocorrem no país, e temos mulheres negras morrendo mais do que brancas, jovens morrendo mais do que mulheres em fase adulta. São características importantes que ainda a sociedade, a mídia, o Sistema de Justiça e, principalmente, o Estado, ignoram”.

 

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