É fundamental que os serviços voltados ao atendimento de mulheres sejam vistos como espaços seguros
(Jota, 31/10/2018 – acesse no site de origem)
No dia 24 de setembro de 2018, foi sancionada a lei que alterou de forma substancial o título que aborda os crimes contra a dignidade sexual do Código Penal (Lei nº 13.718/2018).
Tal normativa foi elaborada como resposta a casos de grande repercussão, como o estupro de uma adolescente no Rio de Janeiro, filmado e divulgado na internet em 2016, e o episódio do homem que ejaculou no pescoço de uma mulher no interior de um ônibus em São Paulo no ano de 2017.
Resumidamente, a lei tipificou como crime a importunação sexual e a divulgação de cena de estupro ou de imagens de sexo sem consentimento (conhecida como revenge porn). Previu, também, novas causas de aumento de pena, entre elas o estupro coletivo, cometido por dois ou mais agentes, o estupro corretivo, praticado com o objetivo de “controlar o comportamento sexual ou social da vítima”, e, no caso do revenge porn, quando o crime for praticado por quem “mantém ou tenha mantido relação íntima de afeto com a vítima ou com o fim de vingança ou humilhação”.
Por fim, fez com que todos os crimes contra a liberdade sexual passassem a ser processados mediante ação penal pública incondicionada, ou seja, uma vez registrado o boletim de ocorrência ou informado o Ministério Público, a investigação e o processo seguirão a despeito da vontade da mulher.
Antes da entrada em vigor da lei, crimes sexuais, exceto em casos de estupro de vulnerável, eram processados por meio de ações penais públicas condicionadas. Isto é, para que a ação penal tivesse curso, era necessária a chamada “representação”, manifestação expressa do desejo em transformar a denúncia em processo judicial realizada no prazo de até seis meses após o acontecimento dos fatos.
Nesse sentido, a lei modificou um ponto central para as mulheres: a possibilidade de decidirem sobre a continuidade ou não de um processo penal contra o agressor.
Essa alteração levanta a discussão sobre a autonomia das mulheres em decidir sobre quais devem ser os desdobramentos jurídicos da situação de violência vivenciada.
De um lado, há quem defenda que a desnecessidade de manifestação de vontade da vítima para o prosseguimento da ação penal representa uma conquista, uma vez que crimes contra a dignidade sexual seriam entendidos como de interesse público e, assim, deixariam de ter como requisito a representação, cujo prazo de seis meses é considerado curto para o reconhecimento da situação de violência e a consequente tomada de decisão da mulher.
De outro, há quem aponte que a resposta ao problema não está na possibilidade de mulheres decidirem sobre a continuidade ou não da ação penal. Ainda que o prazo para representação seja, na maioria das vezes, considerado insuficiente, as estratégias deveriam se centrar em saídas alternativas, que respeitassem sempre a autonomia decisória das mulheres. Isto não impede que se possa discutir, por exemplo, a ampliação o prazo para representação, por meio reformas em outros dispositivos do Código Penal e de Processo Penal.
Embora possa parecer paradoxal, a ação penal incondicionada, ao limitar ao poder de escolha da mulher, pode caminhar na contramão da chamada escuta acolhedora, perspectiva de atuação que parte da premissa de que as mulheres, e não o Estado, devem decidir sobre as melhores soluções para as violências por elas sofridas. Tal perspectiva considera que a solução para o enfrentamento das violências de gênero não vem necessariamente da persecução penal, mas de uma escolha da própria mulher sobre quais caminhos seguir.
O atendimento adequado para casos de violência sexual deve ser orientado à construção de soluções multidisciplinares, compreendendo que se trata de uma violação de direitos humanos e, também, de uma questão de saúde pública, na qual a garantia de acesso a um serviço de saúde no prazo de 72 horas é essencial. Isso porque, de acordo com norma técnica do Ministério da Saúde, devem ser medidas prioritárias a realização de atendimento médico, acesso à profilaxia para prevenção de infecções sexualmente transmissíveis e prescrição de contracepção de emergência.
Em um cenário onde, muitas vezes, serviços direcionados a mulheres vítimas de violência sexual condicionam o atendimento ao registro de boletim de ocorrência, a previsão de desencadear uma ação penal sem consentimento pode funcionar como uma barreira de acesso aos cuidados de saúde necessários. Em outras palavras, sob o risco de serem obrigadas a notificar os acontecimentos à autoridade policial com o registro da ocorrência, o que possibilitará a continuidade da investigação e ação penal a despeito de sua vontade, mulheres podem optar por não acessar os serviços públicos, tornando ainda mais complexa a sua busca por auxílio.
Entretanto, para o efetivo enfrentamento da violência de gênero, é fundamental que os serviços voltados ao atendimento de mulheres sejam vistos como espaços seguros, nos quais os profissionais possam orientar as mulheres sobre seus direitos, explicar as possibilidades para sair da situação de violência e oferecer alternativas.
Muito embora a lei possa ser considerada um avanço em alguns pontos, o enfrentamento da violência contra a mulher deve extrapolar a perspectiva da criminalização. Para que o Direito apresente soluções efetivas e acolhedoras para as vidas das mulheres, devemos passar a compreendê-las como protagonistas de suas histórias e priorizar a sua autonomia de escolha sobre quais as melhores alternativas para viver uma vida sem violência.