Estupradores não sentem remorso, por Ivan Martins

21 de setembro, 2015

(Época, 21/09/2015) “Filha da Índia”, um documentário sobre o dramático estupro coletivo ocorrido num ônibus de Nova Délhi em 2012, mostra como a violência sexual contra as mulheres é justificada pelos criminosos: a culpa é delas

O que mais incomoda no documentário Filha da Índia não é a reconstrução – minuciosa e tétrica – do estupro coletivo que causou a morte da estudante de fisioterapia Jyoti Singh, em 16 de dezembro de 2012. Não. O mais chocante, o que realmente parece inacreditável, é a sequência de depoimentos masculinos atribuindo a responsabilidade pelo crime à própria vítima. Jyoti voltava do cinema com um amigo, às 9 horas da noite, quando ambos foram atacados por seis homens no interior de um ônibus em Nova Délhi, capital do país.

“No momento em que ela saiu de casa com um rapaz que não era nem seu marido e nem seu irmão, deixou para trás sua moral e sua reputação e tornou-se apenas uma mulher”, afirma o advogado M.L. Sharma, defensor de um dos acusados. Ele não explica o que significa ser “apenas uma mulher” e nem é o único que diz coisa semelhante. Outro advogado, com aparência enganosamente civilizada, afirma que se a irmã dele andasse por aí com homens que não são da família, ele seria o primeiro a “levá-la para a fazenda e atear-lhe fogo”.

Os depoimentos do filme ilustram abundantemente a tese central da diretora Leslee Udwin, uma conhecida militante feminista do Reino Unido: existe na Índia, assim como no resto do mundo, uma cultura que, em graus diferentes, justifica e fomenta a violência contra as mulheres, com base na presunção de inferioridade e no direito de posse e controle do seu corpo pelos homens. “É ensinado dentro das famílias que as mulheres valem menos, e que se pode fazer o que quiser com elas”, diz Leslee. “Por isso, em toda parte as mulheres continuam a ser agredidas e violadas. ”

Quando as feministas brasileiras defendem o direito das mulheres a se vestirem como quiserem, sem serem julgadas ou incomodadas nas ruas, estão combatendo um argumento conservador que o filme deixa evidente, e que parece ser universal: as mulheres “decentes”, que se vestem com recato e evitam as ruas, não sofrem violência sexual. Essa afirmação, contudo, é inteiramente falsa.

A estatística brasileira mostra que 86% dos estupros são cometidos dentro de casa, por parentes ou conhecidos. Que tipo de vestimenta ou comportamento as meninas precisam adotar para não serem curradas pelo pai, pelo padrasto ou pelo tio, num canto escuro de sua própria casa? Embora a culpa do estupro caiba somente aos homens que estupram, na Índia e no resto do mundo eles tentam ao menos dividir a culpa com as mulheres: de alguma maneira, o comportamento delas teria provocado os agressores.

A diretora de Filha da Índia conseguiu entrar na prisão e entrevistar longamente um dos participantes do estupro, Mukesh Singh. Ele jura que não tocou na moça, mas admite que dirigiu o ônibus enquanto seu irmão e seus amigos violavam, espancavam, mordiam e – difícil até de escrever – arrancavam os intestinos de Jyoti pela vagina, usando uma chave de fenda. Um dos criminosos foi identificado pelas marcas de dentes que deixou no corpo da estudante de 23 anos.

“Garotas são mais responsáveis pelo estupro do que os rapazes”, diz Singh, com a fisionomia impassível. Sem nenhuma evidência de remorso, ele conta que seu irmão, já embriagado, e agindo como uma espécie de vigilante moral, abordou o casal dentro do ônibus e disse ao rapaz que ele não deveria estar na rua com uma moça a uma hora daquelas. O amigo de Jyoti reagiu indignado e foi espancado a golpes de porretes pelo bando. Depois, os agressores arrastaram a moça para o fundo do ônibus, que continuou rodando enquanto eles se saciavam da forma mais brutal. “Eles queriam apenas dar uma lição a ela e ao amigo”, diz Singh. “Ela não deveria ter lutado enquanto era violentada. Deveria ficar quieta e permitir. Se ela fizesse isso, eles simplesmente teriam ‘feito ela’ e deixado que fosse embora, junto com o rapaz.” O tom de Singh é o de quem está explicando alguma coisa óbvia a uma plateia de néscios, e chega a ser repulsivo.

Jyoti e o amigo foram jogados para fora do ônibus em movimento na beira de uma estrada, empapados de sangue. Ela morreu 13 dias depois. Os médicos disseram aos pais que o corpo não conseguia mais funcionar pela “ausência de partes essenciais”. Singh, seu irmão e dois outros estupradores foram condenados à morte. Um quinto morreu na prisão (a polícia disse que foi suicídio) e o sexto tinha 17 anos na época do crime. Recebeu uma sentença de três anos numa prisão juvenil, para desespero dos pais da garota.

Isso não está no documentário, mas a diretora me contou que Asaram Bapu, um famoso guru com mais de 400 ashrams e milhares de seguidores na Índia, veio a público depois do estupro dizer que Jyoti deveria ter “se ajoelhado” diante de seus agressores e “pedido perdão a eles”, para evitar o que ocorreu. Menos de um ano depois, o mesmo Bapu foi preso, após inúmeras denúncias de violência sexual praticadas por ele e seu filho, inclusive contra menores de idade. “A Índia é um país esquizofrênico”, diz Leslee. “Eles veneram dezenas de deusas, mas admitem tratar as mulheres aos pontapés. Criaram o Kamasutra, mas os casais não podem andar de mãos dadas nas ruas. É incrível.”

O estupro de Jyoti causou tanta comoção, os protestos de rua foram tão imediatos e violentos, que a polícia de Délhi movimentou dois mil policiais na busca e identificação dos culpados. Eles foram presos em poucos dias. Como as manifestações continuavam, e os confrontos entre polícia e estudantes se espalhavam pelo país inteiro, o governo criou uma comissão de notáveis para estudar a causa dos estupros e as soluções possíveis para evitá-los. Os juristas apresentaram um vasto relatório com inúmeras conclusões e sugestões. Muita gente ouvida no documentário acredita que depois desse caso clamoroso alguma coisa mudará, embora a violência contra as mulheres seja endêmica na Índia – e se alimente também (mas não apenas) da pobreza e da ignorância.

O documentário mostra que os estupradores de Jyoti viviam numa mesma favela insalubre na periferia de Nova Délhi. Nenhum deles estudou, todos tinham trabalhos precários e vieram do campo, deixando para trás famílias miseráveis. A diretora do documentário foi até as aldeias entrevistar os pais dos condenados. A mãe do menor de idade, uma pessoa de pobreza e humildade aterradoras, contou que o menino havia saído de casa aos 11 anos porque a família não tinha comida para oferecer. Ele foi para a capital, viver sozinho nas ruas. A mãe achava que estava morto até que a polícia a visitou para dar a notícia do crime e da prisão.

Exibido no Auditório Ibirapuera, em São Paulo, na noite de quarta-feira passada, dia 16, o documentário foi proibido na Índia, sob alegação de que poderia “provocar tumultos”. No Dia Internacional da Mulher, foi transmitido simultaneamente pela BBC em seis países. A Índia seria o sétimo. Em protesto contra a proibição, o canal da BBC na Índia manteve uma tela branca durante o tempo que duraria a transmissão. “O governo está mais interessado em esconder a vergonha dele do que em proteger suas mulheres”, disse Leslee, em entrevista à Fox News americana.

Nascida em Israel, consagrada como atriz, produtora e diretora na Grã-Bretanha, Leslee é assessora da ONU e se diz dedicada a mudar a mentalidade antifeminina vigente no planeta. Acredita que isso será conseguido apenas por meio da educação. Não apenas a instrução formal em línguas e matemática, mas uma educação específica, que enfatize a igualdade de gêneros e o respeito às mulheres. “Isso tem de ser ensinado às crianças enquanto elas são muito pequenas”, afirma. “Depois, as mentalidades já estão formadas”.

O documentário e sua diretora foram trazidos ao Brasil pela Plan Internacional, uma ONG que se preocupa em combater os efeitos da pobreza infantil e ajudar as crianças a realizar o seu potencial. A exibição de Filha da Índia assinalou o lançamento de uma campanha nacional chamada Quanto custa a violência sexual contra as meninas? Como o filme não entrará em cartaz no Brasil, instituições e grupos que estiveram interessadas em exibi-lo devem fazer contato com os organizadores da campanha, por sua página no Facebook .

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