A cearense que inspirou a criação da lei que leva seu nome se mostra preocupada com o decreto que prevê facilitar o porte de armas de fogo, pois o objeto é o que mais mata mulheres no Brasil
(O Globo, 12/07/2019 – acesse no site de origem)
A cearense Maria da Penha foi vítima de dupla tentativa de feminicídio, em 1983, quando ficou paraplégica. O agressor era seu marido. Sua luta de 19 anos por justiça resultou na criação da lei de proteção à mulher que leva seu nome, em vigor desde 2006.
Na avaliação de Maria da Penha, é importante também que a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, passe a se posicionar a respeito.
O GLOBO: Houve um crescimento dos homicídios femininos no Brasil em 2017, com cerca de 13 assassinatos por dia. O número é o maior registrado desde 2007. Por que as mulheres estão morrendo mais, mesmo depois de tantos anos da Lei Maria da Penha?
Maria da Penha: Quando a lei (Maria da Penha) surgiu, não havia políticas públicas (de combate à violência contra a mulher). Demorou quatro ou cinco anos para que todas as capitais tivessem políticas de atendimento às mulheres e mais um tempo até que as mulheres confiassem nessas instituições. Então, esse aumento dos casos era esperado. As mulheres começaram a denunciar porque passaram a acreditar nas instituições. Só que temos percebido que essas políticas públicas não cresceram. Os pequenos municípios, na sua grande maioria, continuam sem.
“A mulher ameaçada precisa de mais proteção e o pretenso agressor tem de ser melhor monitorado. É uma forma de evitar mais mortes. ”
Por que a mulher negra morre mais que a branca, como mostra o Atlas da Violência?
O aumento dos assassinatos de mulheres negras vai pelo mesmo caminho do racismo. As políticas públicas foram criadas para combater a violência contra a mulher, mas o racismo não foi igualmente enfrentado. É necessário um investimento no combate ao racismo também. Essas mulheres não morrem só porque são mulheres, mas porque são negras. Essa rede que existe deve ser capacitada para atender a mulher negra e entender que mulher é mulher: seja negra, indígena ou branca, independente da sua cor.
A mulher negra tem mais dificuldades de acessar dispositivos de segurança que poderiam evitar sua morte?
Eu acredito nisso. A gente vê que nos pequenos municípios não existem políticas públicas e todas as mulheres têm dificuldades de atendimento. Nas grandes capitais essas políticas públicas existem, mas a mulher da periferia, que em sua maioria é negra, tem dificuldades de denunciar porque os equipamentos ficam distantes de onde mora. A mulher negra também pode sofrer violência institucional. Digo isso com base no descaso com que ela é atendida. Muitas vezes, ela vai denunciar um caso de violência e sua fala não ganha a devida atenção e valor.
“Fugir de uma agressão com arma de fogo é muito mais difícil porque atinge a vítima de longe. ”
Como a senhora acha que deve se combater o assassinato de mulheres no Brasil?
Tem que ter investimento em educação para que as próprias crianças que presenciam cenas de violência doméstica saibam que aquilo é errado e que existe uma lei que pode atender aquela mulher e evitar um feminicídio. A educação é essencial tanto para combater o racismo como a violência contra a mulher, como qualquer outra questão que cause danos à sociedade.
A maior parte dos assassinatos de mulheres envolve arma de fogo. Como a senhora vê a movimentação do governo para facilitar o porte de armas?
Com muita preocupação. Fugir de uma agressão com arma de fogo é muito mais difícil porque atinge a vítima de longe. A arma branca também atinge, mas a chance de ela ser atingida de forma fatal é menor. Eu tenho a impressão de que esse projeto não vai passar. Tem muitos parlamentares preocupados. Se com o estatuto do desarmamento estamos com esses números, imagina com esse decreto. Eu fui vítima de arma de fogo que nem sabia que meu agressor (o marido, na época) possuía.
“A lei foi criada para combater a violência contra a mulher, mas o racismo não foi igualmente enfrentado. ”
Na opinião da senhora, o que precisa ser feito para reduzir essas estatísticas?
Se o Estado brasileiro continuar silente em relação à criação de políticas públicas nos pequenos municípios, não temos uma perspectiva boa, não. Por exemplo, veja a importância que é a Casa da Mulher Brasileira, que facilita a vida da mulher naquela cidade. É uma política pública que reúne em um mesmo lugar todos os equipamentos e órgãos que fazem com que a lei funcione. Atende todos os dias, 24 horas. Foi uma criação do governo federal, que começou em Campo Grande (MS), em 2015. Brasília tinha uma, mas foi desativada, assim como está ocorrendo com outras. Por falta de recursos, estão entrando em colapso. Todos os encaminhamentos são realizados sem que ela tenha de sair de um bairro para outro para levar a sua necessidade de ser protegida ou orientada adiante. A mulher ameaçada precisa de mais proteção, e esse pretenso autor de um feminicídio tem de ser melhor monitorado. É uma forma de evitar mais mortes.
A crise financeira de estados e municípios prejudica esses investimentos?
O governo federal precisa ver a gravidade do número de mulheres que são assassinadas. Tem várias instituições trabalhando para mostrar esses dados e é importante que não haja redução no investimento nessas políticas públicas. Você já imaginou quantos filhos ficaram na orfandade por conta desses assassinatos? E o que o governo tem para essas crianças?
Como resolver o problema dos pequenos municípios?
Os pequenos têm de ter um Conselho da Mulher e criar política pública com um centro de referência dentro do CRAS, do posto de saúde ou de instituição de ensino. Tem de ser um lugar no qual a mulher se sinta segura para buscar ajuda e de fácil acesso. Ela não vai ser obrigada a nada (como fazer uma denúncia). Mas tem de conversar. Essa mulher pode estar vivenciado um ciclo de violência doméstica e ela não está se dando conta. A primeira violência não é uma facada. É um grito, um empurrão ou beliscão.
“A mulher negra sofre violência institucional. Ela vai denunciar uma violência e não ganha a devida atenção e valor.”
A Lei Maria da Penha passou por mudanças este ano. Como as senhora as vê?
Algumas mudanças são positivas e aconteceram pela necessidade de fazer com que a lei funcione. E foram importantes. Por exemplo, nos municípios onde não existe uma comarca, a delegada poderá pedir a medida protetiva, solicitar a prisão do agressor na ausência do Judiciário. Dentro dessa perspectiva, a mudança é válida.
No governo Bolsonaro, a Secretaria das Mulheres voltou a ter status de ministério? Como a senhora avalia a atuação dela no combate ao feminicídio?
Eu ainda não vi uma coisa palpável, algum ponto positivo ou diferencial que a ministra (Damares Alves) tenha feito na sua pasta. Não estou assim, por dentro de tudo. Mas, na questão da facilitação do porte de arma de fogo, não houve nenhum posicionamento por parte dela. Já foi falado muito sobre isso e espero que haja uma sensibilização do nosso presidente (Jair Bolsonaro), de repensar essa conduta. As pesquisas mostram que, mesmo quem o elegeu, não está muito convencido de que essa flexibilização é boa.
“A primeira violência não é uma facada. É um grito, um empurrão ou beliscão.”
A saga de Maria da Penha em busca de justiça
Em 1983, o então marido de Maria da Penha deu um tiro em suas costas enquanto ela dormia. Como resultado dessa agressão, ela ficou paraplégica. O agressor declarou à polícia que tudo não havia passado de uma tentativa de assalto. Quatro meses depois, quando Maria voltou para casa – após duas cirurgias, internações e tratamentos –, ele a manteve em cárcere privado durante 15 dias e tentou eletrocutá-la durante o banho.
A perícia desmentiu a versão dele, mas o primeiro julgamento só ocorreu oito anos depois, em 1991. Ele foi sentenciado a 15 anos de prisão, mas saiu do Fórum em liberdade, pois a defesa apresentou vários recursos. O segundo julgamento só foi realizado em 1996. Desta vez, o ex-marido foi condenado a 10 anos e 6 meses de prisão. Mas, sob a alegação de irregularidades processuais por parte dos advogados de defesa, mais uma vez a sentença não foi cumprida.
O ano de 1998 foi muito importante para o caso, que ganhou uma dimensão internacional e a negligência do Estado foi denunciada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (CIDH/OEA). Diante da falta de medidas legais e ações efetivas, como acesso à justiça, proteção e garantia de direitos humanos a outras vítimas de violência doméstica, em 2002, foi formado um Consórcio de ONGs Feministas para a elaboração de uma lei de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher, a Lei Maria da Penha. Ela foi aprovada pelo Congresso anos mais tarde e, em 2006, sancionada pelo então presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva.
Por Daiane Costa