Sob o governo de Jair Bolsonaro, criou-se o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, que atuou na defesa da visão familista, responsabilizando mais a mulher pela proteção da família e desresponsabilizando o Estado quanto à prestação de serviços
Há consenso entre os diferentes grupos políticos partidários de que o fenômeno da violência contra meninas e mulheres constitui um problema a ser tratado em âmbito público. No entanto, sob a negação de elementos caros ao debate científico, há dissenso sobre como devem ser desenvolvidas as ações, especialmente quanto à violência doméstica. Desde meados da última década, o desmantelamento das políticas voltadas às mulheres tem sido uma marca do estado brasileiro, o que pode estar condicionando a prevenção dos feminicídios.
O termo feminicídio foi admitido na legislação brasileira no ano de 2015, sob a Lei nº 13.104, como uma qualificadora do crime de homicídio contra a mulher, ocorrido sob três circunstâncias: 1) em razão de violência doméstica e familiar; 2) por menosprezo à condição feminina e; 3) em virtude de discriminação à condição feminina.
Segundo estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2022), os últimos quatro anos foram marcados pelo crescimento contínuo das mortes de mulheres classificadas como feminicídio pelas Polícias Civis dos Estados e Distrito Federal. Com base no número de mulheres vitimadas no 1º semestre de cada ano, desde 2019 a 2022, identificou-se aumento de 8,6% dos feminicídios. A saber: 631 registros em 2019; 664 em 2020; 677 em 2021; e 699 em 2022. A organização alerta sobre a urgência na priorização do tema no campo das políticas públicas de garantia de direitos e alerta sobre o crescimento de 10,8% dos feminicídios se comparados dados do 1º semestre do ano de 2019, anterior à pandemia de Covid-19, com dados do mesmo período de 2022.
O problema se agrava em razão da disputa entre grupos de interesses que têm captado o orçamento de tal modo que as políticas sociais seguem com suas ações limitadas. Destaque à drástica redução de aporte de recursos federais para o enfrentamento à violência contra a mulher combinada a uma mudança de visão em relação ao fenômeno. Esse fator não deve ser visto como algo recente, mas como uma das consequências das disputas político-ideológicas, sob projetos que utilizam, sem constrangimento, a pauta feminina por conveniência nos discursos e a exclui do rol das prioridades de governo.
Há alguns anos o Brasil passa por uma grave crise política e moral, que teve como uma de suas marcas o inconformismo de Aécio Neves (PSDB) – candidato à presidência da República na eleição de 2014 –, principal oponente de Dilma Rousseff (PT), diante do resultado das urnas. Contrariamente ao que indicavam agências de pesquisa, Aécio foi derrotado por Dilma. Insatisfeito, o candidato contestou o resultado junto ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Sem êxito, o confronto partiu para entraves via Congresso.
Sobre o governo eleito, intensa pressão. No 1º semestre do ano de 2016 destaque a dois eventos emblemáticos, distintos por natureza, mas relevantes para as memórias sobre a história das mulheres no Brasil.
O primeiro diz respeito à 4ª Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, realizada entre os dias 10 e 12 de maio, em Brasília, instância que compila as demandas das mulheres do país, orientando um amplo Plano Nacional de Políticas para as Mulheres. Na abertura do evento, uma fala da presidente Dilma Rousseff chamou atenção sobre o momento em curso: “Nenhum fundamentalismo vai impedir que nossa perspectiva de gênero se afirme cada vez mais”.
Na perspectiva de gênero considera-se a existência do poder como elemento condicionante das relações entre os gêneros, em que um dos componentes o exerce sobre o outro, chancelando as desigualdades perpetuadas socialmente mesmo que de forma inconsciente. A categoria de “gênero” ocupa a centralidade da análise quando o assunto é violência contra as mulheres, uma vez que, de forma alarmante, a violência ocorre em razão da condição de gênero feminino, independentemente do sexo. Nesse sentido, políticas voltadas para as mulheres e conduzidas sob a perspectiva de gênero subsidiam ações compartilhadas para a prevenção dos feminicídios, que seguem avançando no país.
No segundo destaque, relembro que, como uma punhalada nas costas do coletivo de mulheres protagonistas da 4ª CNPM, no dia 12 de maio, último dia de atividades, o Senado decidiu pela abertura do processo que afastou Dilma Rousseff do cargo e que levaria, três meses depois, a primeira mulher a ocupar a Presidência da República do Brasil ao impeachment.
A conexão dos dois episódios está em um elemento que marcou a condução de ambos os processos: a condição de mulher. Enquanto as Conferências mobilizavam mulheres de todas as regiões do país no sentido de pensar e apoiar a formulação de propostas no sentido da garantia dos direitos humanos das mulheres, paradoxalmente, a presidente sofria com a violência política cotidiana, tanto nos espaços informais da vida em sociedade, quanto nos espaços formais.
A assunção de Michel Temer (MDB) ao poder marcou o início do seu “Machistério”. Sem representação feminina, tratou de extinguir o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, onde se concentrava a gestão dos programas de enfrentamento e combate à violência contra a mulher. Desde então, a pauta das mulheres tem sido esvaziada em escala nacional.
Sob o governo de Jair Bolsonaro, eleito presidente para a gestão 2019-2022, na direção oposta, criou-se o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, que atuou na defesa da visão familista, responsabilizando mais a mulher pela proteção da família e desresponsabilizando o Estado quanto à prestação de serviços. Em contrapartida, promoveu a negação da perspectiva de gênero.
No sentido contrário às bases de formulação da Lei Maria da Penha (11.340/2006), que foi concebida sob tal perspectiva, no comando de Damares Alves, a estratégia condicionou as políticas de tal forma que restou muito difícil a aplicabilidade da LMP nos moldes para os quais foi criada. Dentre outros fatores, cortes orçamentários e o apagamento da mulher enquanto sujeito do gênero feminino, o que engloba, além daquelas nascidas sob o respectivo sexo – as cis –, também mulheres trans e travestis.
Constituem desafios ao governo eleito para a gestão 2023-2026 viabilizar o Plano Nacional de Enfrentamento ao Feminicídio, criado em 2021; o Plano Nacional de Prevenção e Enfrentamento à Violência contra a Mulher na Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social; a garantia de 5% dos recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública, conforme a Lei nº 14.316/2022 e a reativação das estratégias adormecidas desde o início do período de retrocessos, em meados da última década.