O que a política tem que ver com feminicídio?
(O Estado de S.Paulo, 09/03/2020 – acesse no site de origem)
Você acha que aumentou o número de mulheres assassinadas ou agora as notícias são mais frequentes? São perguntas que ouço a todo momento. Liga-se a TV e somos invadidos por notícias de mulheres assassinadas todos os dias. Na tela, fotos de adolescentes que sumiram, moças que foram trabalhar e não voltaram para casa e mães, por vezes avós, desesperadas sem saber o que aconteceu. Procuram a polícia e ficam angustiadas esperando uma resposta.
A TV parece ter faro especial para relatar casos rumorosos. Entrevistam vizinhos em busca de quê, alguma pista? Atiçam-se a curiosidade e o medo. As fotos das jovens desaparecidas curiosamente exibem rostos bem maquiados, blusas decotadas, corpos torneados. Enquanto isso, por dias a fio a reportagem instiga com a pergunta: quem teria visto a desaparecida? Propositadamente ou não, escolhe mostrar aqueles corpos que depois serão localizados no meio do mato, na margem de rios. O assassinato de mulheres tornou-se um espetáculo. As pessoas ficam atraídas pela TV, dão entrevistas ainda que nada tenham a dizer. Modestos quartos são invadidos, roupas e objetos pessoais, exibidos, invadem-se locais pobres – nunca vi entrarem numa casa de classe média, embora mulheres de todas as classes sejam assassinadas. A condição de classe resguarda a intimidade.
Os dados de 2020 mostram que aumentou, sim, o número de mulheres assassinadas. As estatísticas ficaram mais precisas pela ação de profissionais do Judiciário que se têm debruçado para que os dados sejam analisados e apresentados com objetividade. Para o público, com a crescente visibilidade das mulheres assassinadas, o conceito de feminicídio entra no vocabulário cotidiano. De 2019 para 2020 o aumento foi de 7,2%. Prefiro traduzir: foram mortas mais 88 mulheres. Esta macabra estatística revela que não escapa nenhuma região do País. No Amapá o índice de aumento chega a 30%. E as pesquisas atuais confirmam o que movimentos feministas denunciam há décadas: a violência de gênero atinge meninas, adolescentes, mulheres de todas as idades. Ela pode ser física, psicológica, sexual e terminar em feminicídio. Levamos 50 anos para as denúncias serem reconhecidas e a palavra da mulher, ouvida.
A violência é com frequência cometida por pessoas conhecidas ou parentes. Basta uma visita ao setor dirigido pela médica Ivete Boulos, no Hospital das Clínicas de São Paulo, para verificar que chegam ali bebês contaminados em casa com sífilis ou outras doenças sexualmente transmitidas. E só chegamos a tais chocantes constatações graças à implantação de políticas públicas.
Mas é preciso mais, pois avançar nesse saber implica ampliar a educação sexual para meninas e meninos. É ilusório imaginar que “quem ensina é a mamãe ou a vovó”, como afirmou o presidente! Quem ensinou a ele, a seus filhos ou aos telespectadores? Onde foi que aprenderam sobre o funcionamento do próprio corpo, as relações entre homens e mulheres, a sexualidade? Quando se resiste à educação sexual, mistifica-se o conhecimento do corpo, dos desejos, as relações amorosas. As importantes cartilhas sobre educação sexual feitas pelo Ministério da Educação com apoio do Ministério da Saúde foram demonizadas e proibidas após 2014. Perdeu-se enorme oportunidade de mostrar a meninas e meninos como funciona seu corpo e, sobretudo, como devem ser respeitados. Ao contrário, o que se propõe é ocultar a realidade, manter o machismo, a educação pelo castigo e, sobretudo, a permanência da tradição de subordinação da mulher ao homem, como se a masculinidade ficasse arranhada quando uma mulher é independente.
O agressor usa instrumentos caseiros, como facas, ferramentas ou as mãos, o que estiver ao alcance para agredir e matar. E usa-os com voracidade e repetição de golpes, “como se pretendesse destruir a mulher”, diz a promotora de Justiça Valéria Diez Scarance. As armas usadas na violência de gênero revelam crueldade, ódio, demonstração da prepotência que esconde insegurança e medo.
De 1992 a 2015 construímos políticas públicas: foram criadas as delegacias da mulher, assinamos convenções internacionais de respeito a homens e mulheres e, no Brasil, aprovamos a Lei Maria da Penha (2006), a legislação que pune o estupro (2009), a lei dos crimes sexuais (2009), a Lei do Feminicídio (2015) e a da Importunação Sexual (2018). O elevado feminicídio mostra que há um fosso entre as políticas públicas construídas e sua implementação. E não falo só de recursos financeiros, mas, sobretudo, do comportamento de quem modela a educação e a orientação política do País.
Desqualificar uma trabalhadora pondo em dúvida sua honestidade profissional é o velho argumento machista que busca destruir sua idoneidade. É o antigo comportamento que ridiculariza a mulher para mostrar uma falsa superioridade masculina. Ofender uma mulher, desqualificar seu trabalho tornam-se modelo de comportamento para outros homens e para a nova geração. É o caminho da violência e do feminicídio. Não por acaso, Damares Alves mentiu na ONU e não soube dizer à imprensa o que seu ministério tem feito. A ministra e seu chefe deveriam retomar o trabalho que foi feito e ampliá-lo, pois ainda é tempo de recuperar o alerta da décadas atrás: quem ama não mata.
Feminicídio e política, por Eva Alterman Blay
PROFESSORA EMÉRITA DA USP