O G1 MS reuniu depoimentos de parentes que contam as dificuldades enfrentadas após a chegada de crianças e adolescentes que carregam o trauma da morte violenta da mãe
(G1 MS, 24/06/2019 – acesse no site de origem)
Uma criança ou adolescente que tem a mãe assassinada pelo próprio pai ou pelo novo companheiro passa, de maneira abrupta, a viver uma nova rotina familiar: muitas delas, com a mãe morta e o pai preso, vão morar com familiares com quem jamais imaginaram dividir o teto. Do mesmo modo, parentes próximos de um dia para o outro se vêem diante da necessidade de oferecer um lar com estabilidade financeira e emocional àquela criança enlutada, ao adolescente inconformado com a violência que lhe destruiu a família.
Em Mato Grosso do Sul, só este ano, 39 pessoas conheceram essa dor. São os filhos de 15 das 19 vítimas de feminicídiode janeiro a 23 de junho. Entre os adultos, relatos na reportagem “Filhos do feminicídio” do G1 MS mostram o sofrimento de filhos que enfrentam a ausência da mãe. O depoimento de Glauco, pai das filhas de Nádia Sol, que cuida das meninas depois do assassinato da professora cometido por um ex-namorado, mostra a postura do pai na tentativa de amenizar a dor das crianças que têm crises de choro constantes.
A maior parte dos menores filhos das vítimas ficam com avós e tios, a chamada “família extensa”. Alguns, como Leidinalva, mudam de cidade para que os sobrinhos possam, ao menos, permanecer na escola para não impactar ainda mais a rotina que já foi modificada radicalmente.
Tia cuida de adolescente que viu pai matar mãe a golpes de machado
No município de Costa Rica, o dia 17 de março parecia um domingo tranquilo para a família de Edinalva Melgaço, como relata ao G1 sua irmã, Leidinalva. Evangélicos, estavam na igreja naquela tarde e depois foram para a comemoração do aniversário do pastor. Na festa estavam Edinalva, o filho de 15 anos, o outro filho de 13 anos e o ex-marido, de quem havia se separado recentemente.
Ao saírem da festa ela o ex combinaram de cada um levar um filho para casa. Ela e o mais velho foram embora em uma motocicleta e o pai levou o menino de 13 anos para a casa de uma avó. Quando mãe e filho passavam pelo centro da cidade, um carro fechou a moto, derrubando os dois. Do veículo desceu o pai do menino segurando um machado e deu vários golpes na cabeça de Edinalva. O rapaz tentou defender a mãe e, segundo a tia, por pouco não foi atingido:
“Aquele homem levantou o machado contra o próprio filho, matou a esposa na frente do menino, marcou ele para sempre. Se isso não é um monstro, não sei o que mais pode ser.”
Ela conseguiu fugir até uma pizzaria, mas o ex a alcançou, feriu-a novamente e fugiu. O rapaz de 15 anos ficou ao lado da mãe na rua até a chegada do socorro. A vítima chegou a ser atendida, mas morreu ainda no local. O homem foi encontrado pela polícia e alegou que matou Edinalva por ciúmes, porque não aceitava a separação. Ele segue preso.
A irmã de Edinalva conta que morava em outra cidade e mudou-se para Costa Rica, assumindo a tutela do menino mais velho. O mais novo ficou com a avó materna. A tia relata que não sabe bem lidar com a tristeza do menino, que costuma internalizar a dor. Ele frequenta a igreja com a família que conta com a fé e o apoio da comunidade para ajudá-lo a retomar sua rotina:
“Às vezes ele me diz ‘Tia, sinto uma dor tão forte, uma tristeza tão grande dentro de mim’ e eu só peço a ele que me diga quando se sentir assim para que a gente possa ajudar. Está tudo muito confuso, é muita dor, a dele e a nossa que mesmo tentando auxiliar, também sofremos muito.”
Edinalva trabalhava em um centro de educação infantil e estava no segundo ano do curso de Pedagogia.
Burocracia e dificuldade financeira
Leidinalva conta que os bens dos pais – a motocicleta da irmã e o carro usado pelo assassino – estão apreendidos para investigação. Enquanto isso, a família tenta com dificuldade equilibrar as contas da casa: “Todos foram pegos de surpresa”. O que pertencia aos pais e poderia ser revertido em prol dos meninos, por conta do trâmite legal, não pode ser usado: “Nós fazemos o que é possível mas eles precisam das coisas, de tratamento, remédio, materiais de escola”.
O jovem ainda não havia passado por consulta com psicólogo, encaminhado já na própria delegacia, porque estava buscando a mudança em outra cidade junto com a tia e perdeu a consulta. Desde então, Leidinalva tentava remarcar. O crime completou 3 meses na última semana.
O G1 entrou em contato com a secretária de saúde de Costa Rica, Adriana Maset Tobal, que informou estar ciente do caso. A Secretaria procurou Leidinalva e até a publicação desta reportagem, uma nova consulta estava marcada para esta segunda-feira (24). Segundo Adriana, o rapaz deve passar por triagem com um psicólogo do município e em seguida começará tratamento na unidade de saúde do bairro. As sessões acontecerão uma vez por semana e, caso necessário, duas vezes.
O irmão mais novo já passou pela consulta mas foi uma vez só e não retornou. Segundo a família, o menino de 13 anos está revoltado. A mãe da vítima assumiu a tutela do neto e cuida dele sozinha e, para tentar recomeçar, planeja mudar-se para o Tocantins.
“A vida dele mudou do dia para a noite. Esses dias passamos perto da casa antiga deles e eu vi que ele ficou triste, perguntei se sentia saudades de casa, ele disse que sim, que sentia falta das coisinhas dele, da vida que ele vivia antes disso tudo, é de cortar o coração”, finaliza a tia.
Irmã teve que apagar contato para filha parar de ligar para tia morta
Rosiane Peres é irmã de Laís Peres, 26 anos, estrangulada pelo marido em Alcinópolis no dia 11 de março. Ela conta que jamais confiou no cunhado, que já respondia por tentativa de feminicidio quando esfaqueou uma adolescente de 15 anos em 2016 e estava foragido. “Ele era muito ciumento, tinha ciúme até das nossas conversas. Se ele não ouvisse sobre o que estávamos falando, brigava com a minha irmã”.
Um mês antes de matar a esposa ele foi denunciado por ela por agressão: ao persegui-la com uma faca, cravou a arma na televisão do casal. Laís era a única vítima entre as 19 mulheres assassinadas em MS este ano que tinha medida protetiva contra o companheiro: “Ele ficava ligando 24 horas para ela, pediu perdão, prometeu que iria mudar”, conta a irmã.
Rosiane e Laís não têm outros irmãos, eram muito unidas e criavam as filhas muito próximas. Laís alugou uma casa ao lado de onde a mãe vivia para ficar perto e no dia do crime, a menina, filha da vítima, estava com a avó na fazenda onde mora a tia. Laís ficou em casa com o marido, onde teria acontecido uma festa.
Na segunda-feira pela manhã a avó retornou para casa com a neta e quando chegaram, viram as viaturas da polícia em frente à casa. A menina estava ao lado da avó quando um policial disse “Encontraram a moça morta lá dentro”, relata a tia. “As duas entraram em desespero, não tem como descrever”. A filha de Rosiane de 3 anos era muito apegada à tia:
“Tive que apagar o contato da minha irmã para minha filha para de fazer ligações para o número dela pelo whatsapp”, conta.
A guarda da filha de Laís ficou com a avó materna, de 52 anos, que também cuida da própria mãe. “O pai da menina não é presente, mora em outra cidade e de vez em quando manda R$100 para ajudar nas despesas, ele ligou dizendo para minha mãe que não poderia criar ela”.
Ela conta que a criança de 11 anos está inconformada, agressiva e teve problemas de notas baixas na escola. A filha de Laís faz acompanhamento psicológico mas está “abatida”:
“Às vezes quando estou com a minha filha percebo que ela fica olhando, triste, sai de perto, chora e diz que ninguém gosta dela. Aí a gente conversa com jeito, porque não adianta, ninguém vai substituir o amor de mãe que ela sente falta.”
“Essa dor é de todos nós, minha mãe está sofrendo, eu estou sofrendo, minha filha está sofrendo, mas nada se compara ao que a filha dela está sofrendo.”
O psicólogo Guilherme Fagundes explica que crianças perderam a mãe assassinada em um contexto de violência doméstica precisam de tratamento minucioso e paciente. A possibilidade desse trauma trazer consequências até a vida adulta é muito grande:
“Uma criança ou adolescente que vem dessa realidade precisa criar um propósito para conseguir lidar com as adversidades no futuro. Jovens que conheceram um ambiente hostil têm grandes chances de crescer com crenças limitantes e isso impacta em dois pontos: primeiro, eles tendem a não acreditar que sua história pode ser melhor que a da própria família, e segundo, jovens costumam repetir o comportamento violento dos pais em momentos de pressão ao longo da vida.”
Dezenove feminicídios em MS até 23 de junho
Mato Grosso do Sul registrou 19 feminicídios de 1° de janeiro a 23 de junho deste ano de acordo com a Secretaria Estadual de Justiça e Segurança Pública. Das 19 vítimas, 15 tinham filhos. Destes, 23 são menores de idade.
O caso mais recente é o de Kelly Crista, morta a golpes de canivete pelo ex-namorado neste sábado (22) enquanto comemorava seu aniversário em Costa Rica. O suspeito disse à polícia que “não sentia arrependimento, estava aliviado”. Ele segue preso.
O estado tem um centro de apoio a parentes enlutados de vítimas de feminicídio e também para mulheres que sobreviveram às tentativas de assassinato por parte de seus companheiros. Veja as políticas públicas de assistência:
- CEAM: O Centro Especializado de Atendimento à Mulher em situação de Violência oferece atendimento psicossocial gratuito e continuado, atendendo mulheres sobreviventes de tentativas de feminicídios e mulheres que perderam familiares de forma cruel (mães, tias, avós, filhas maiores de idade). Atualmente, estão sendo atendidas no CEAM 3 mulheres sobreviventes e 3 mulheres familiares de vítimas do feminicídio.
- PROMUSE: A Polícia Militar tem o Programa Mulher Segura que fiscaliza, acompanha e monitora mulheres vítimas de violência com medidas protetivas, realiza visitas técnicas e faz encaminhamentos para a rede de atendimento.
- POP Feminicídio: O Procedimento Operacional Padrão existe desde março de 2018 e envolve todos os profissionais da segurança pública que atuam em casos de feminicídio e tentativas, para padronizar os atendimentos, aprimorar processos e rotinas e dar maior visibilidade aos crimes de feminicídios para estimular a discussão. No segundo semestre de 2019 terá início um programa de capacitação para atendimento humanizado e especializado de profissionais que atuam em órgãos da rede de atendimento às mulheres em situação de violência.
Na capital, sob a coordenação da Subsecretaria de Políticas Para a Mulher, a Casa da Mulher Brasileira funciona 24 horas e conta com um centro de apoio às vítimas, com alojamento e brinquedoteca para as que precisam sair de casa com os filhos. Lá é onde fica a Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam). Na Casa há uma equipe multidisciplinar de psicólogas e assistentes sociais, Promotoria e Defensoria Pública e a 1ª Vara de Medidas Protetivas do país.
Em Mato Grosso do Sul, de acordo com a juíza titular da 3ª Vara da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, Jacqueline Machado, mais de 5 mil medidas protetivas contra companheiros violentos estão em vigor.
Jaqueline Naujorks