Em 2023, foram registradas 2.662 mulheres negras vítimas de homicídio, o que representa 68,2% do total de homicídios femininos
Não é possível debater violência de gênero sem pensar em seus recortes, ainda que este seja um fenômeno, tragicamente, vivenciado por todas as mulheres. Sem a lente da interseccionalidade é impossível compreender os números da violência contra mulheres no Brasil pois, se o objetivo é entender o fenômeno e enfrentá-lo, faz-se necessário conhecer as vulnerabilidades específicas de cada demografia.
A universalidade nos auxilia na medida em que nos revela que a violência contra a mulher no país tem alcance nacional e transversal. Contudo, é preciso cautela, pois ela não pode impedir que reconheçamos o fato de que algumas mulheres vivenciam a violência de forma mais aguda e reiterada do que outras. Neste ponto, as mulheres negras – o grupo composto por pretas e pardas – seguem exercendo um triste protagonismo: os dados registrados no sistema de saúde de homicídios femininos filtrados por raça/cor mostram que as mulheres negras são as mais atingidas por tal tipo de violência.
Em 2023, foram registradas 2.662 mulheres negras vítimas de homicídio, o que representa 68,2% do total de homicídios femininos. Dito de outro modo, estamos diante de uma taxa de 4,3 mulheres negras mortas por homicídio por grupo de 100 mil habitantes. Os números evidenciam o trágico encontro entre a cultura patriarcal e o racismo estrutural, ambos fortemente enraizados no Brasil. De modo que os dados dessa edição são mais um retrato, entre tantos, de uma violência de gênero (seja ela letal ou não letal) que dá preferência para corpos negros, e que é histórica.
Nos últimos onze anos (2013 a 2023), os registros apontam para 30.980 mulheres negras vítimas de homicídio. No período, isso representa 67,1% do total das vítimas, considerando os registros com causa definida do óbito. E em termos de taxa, se a variação nesse período aponta para uma queda de 20,4% – passando de 5,4 mortes por 100 mil em 2013 para 4,3, mortes em 2023 –, o percentual de diminuição é menor na análise dos últimos cinco anos (2018 a 2023), de 17,3%. No último ano (de 2022 para 2023), a variação volta a ser positiva, registrando um aumento de 2,4% na taxa.
O cenário – que é ruim, pois passamos de um cenário de diminuição das taxas para um aumento dos números – torna-se ainda pior quando comparamos a situação das mulheres negras e das mulheres não negras. Seja se pensamos nas taxas dos últimos 10 anos, seja se observamos apenas os números do último ano, a situação das mulheres negras é pior.
Em outras palavras: a queda da taxa na última década foi mais intensa para as não negras (de 26,5%, em comparação com a queda de 20,4% das mulheres negras); e, se de 2022 para 2023 a taxa de homicídio de mulheres negras aumentou 2,4%, a situação das não negras acompanhou o cenário nacional, de estagnação. Ou seja, proporcionalmente, houve menos mortes de mulheres não negras do que de mulheres negras. A desigualdade e o racismo estrutural, ordenadores da nossa sociedade, são a força motriz por trás desta conjuntura.
Da mesma forma como acontece com a distribuição dos homicídios no Brasil, de modo geral, o recorte por raça/cor ilumina também as desigualdades regionais da distribuição dessas mortes. Como visto, enquanto em 2023 a taxa Brasil de homicídio feminino de negras foi de 4,3, foram 12 os estados cujas taxas superaram a nacional. As piores delas foram encontradas em Pernambuco (7,2), Roraima (6,9), Amazonas e Bahia (cada um destes dois últimos com taxa de 6,6). Quinze estados, por outro lado, tiveram suas taxas inferiores à nacional, sendo as menores delas registradas em São Paulo (1,7), Santa Catarina (2,4), Distrito Federal e Minas Gerais (cada um desses últimos com taxa de 3,2).
Em termos de variação das taxas, se no Brasil como um todo o homicídio de mulheres negras caiu 20,4% (entre 2013 a 2023), 13 estados não tiveram o mesmo mérito, com o cenário tornando-se pior para as mulheres negras, em comparação com a dinâmica nacional. Os três estados que apresentaram os aumentos mais acentuados foram Piauí (58,6%), Ceará (57,5%) e Amazonas (32%). Na margem oposta, as quedas mais expressivas foram registradas no Distrito Federal (62,8%), Goiás (60,4%) e Acre (58,8%).
Quando olhamos para os últimos cinco anos (2018 a 2023), em contrapartida, outros estados chamam a atenção. Enquanto a tendência brasileira como um todo também foi de queda na taxa (na ordem de 17,3%), nove estados apresentaram crescimento. Piauí é o único que, tanto na última década como nos últimos cinco anos, figura entre os três estados com as piores taxas. Entre 2018 e 2023, apresentou um crescimento de 39,4% da taxa de homicídio de mulheres negras. Na sequência ficaram Rondônia (31,3%), que, de outro lado, registrou uma queda de 16% de 2022 para 2023; e Alagoas, que nos últimos cinco anos teve um crescimento de 29,5% da taxa, ao passo que de 2022 para 2023 não registrou nem aumento nem diminuição, mas uma estagnação de sua taxa. Ainda no período de 2018 a 2023, as quedas mais expressivas foram observadas em Roraima (54,6%), Acre (53,5%) e Ceará (51,2%).
A dinâmica do curto prazo, de 2022 para 2023, também evidencia disparidades. Enquanto no Brasil o crescimento foi na ordem de 2,4%, 11 estados tornaram-se ainda mais perigosos para as mulheres, sendo os crescimentos mais expressivos registrados no Rio Grande do Norte (27,3%), em Pernambuco (26,3%) e em Minas Gerais (23,1%). No caso de Minas, ainda que figure entre os estados com as menores taxas de 2023, este crescimento deve servir para chamar atenção para o problema, que não deve ser visto como superado. De outro lado, as quedas mais acentuadas de 2022 para 2023 foram registradas no Mato Grosso do Sul (40%), Rio Grande do Sul (17,8%) e Rondônia (16%).
A partir das taxas de homicídio, é possível olhar também para o chamado risco relativo (RR), uma medida que permite comparar a probabilidade de um evento ocorrer em dois grupos diferentes. No caso da comparação das taxas de homicídio entre mulheres negras e não negras, o risco relativo ajuda a quantificar quantas vezes o risco de uma mulher com uma determinada característica (ser negra, neste caso) ser assassinada é maior ou menor em relação a outro grupo de referência (as mulheres não negras). Esse cálculo é útil para identificar desigualdades na violência letal e, no limite, servir como mais um indicador para orientar políticas públicas.
No Brasil, em 2023, o risco de uma mulher negra ser assassinada foi 1,7 vezes maior do que o risco de uma mulher não negra. Isso significa que, para cada homicídio de uma mulher não negra, ocorreram, proporcionalmente, 70% mais homicídios de mulheres negras. Em 12 estados brasileiros, o risco para essas mulheres é ainda mais grave do que o cenário Brasil. Alagoas é o caso mais preocupante, que sobressai entre todos os outros: em 2023, mulheres negras foram 28,5 vezes mais assassinadas do que mulheres não negras. Na sequência, aparece o Piauí, onde em 2023 o risco relativo ficou no patamar de 4,2, e Rio Grande do Norte (4,0).
As desigualdades raciais na letalidade feminina também se refletem na distribuição proporcional dos homicídios de mulheres negras e não negras em relação à sua representatividade populacional. Em 22 dos 27 estados brasileiros, isto é, em 88% do território nacional, observa-se uma sobrerrepresentação de mulheres negras entre as vítimas.
68,9% dos homicídios de mulheres tiveram vítimas negras, enquanto essa população representa 55,7% do total de mulheres no país. O Amapá é onde essa desigualdade apareceu em sua forma mais extrema: 100% dos homicídios femininos vitimaram mulheres negras, apesar de sua representação populacional ser menor do que isso (representam 79,6%).
De outro lado, apresentando quase que um padrão inverso, está a representatividade do homicídio de mulheres não negras em relação à essa população. A porcentagem de homicídios de mulheres não negras é consistentemente inferior à sua participação na população. No Brasil como um todo, mulheres não negras representam 44,3% da população feminina, mas apenas 31,1% das vítimas de homicídio. Em alguns estados, essa discrepância é ainda maior.