Diante de um cenário preocupante, cresce a importância da educação no combate à violência doméstica, que é complementada pelo trabalho da Justiça e da polícia na punição e na investigação dos crimes
(Correio Braziliense, 05/05/2019 – acesse no site de origem)
Relacionamentos que deveriam ser afetivos e respeitosos, mas terminam de maneira brutal. Mês a mês, os casos de feminicídio mancham de sangue as páginas da história do Distrito Federal. No domingo de Páscoa, a vítima mais recente: Eliane Maria Sousa de Lima, 49. A moradora do Gama foi assassinada por Josué Pereira da Silva Filho, 47, enquanto tentava proteger a irmã das agressões do cunhado. O caso é uma das nove ocorrências desse crime registradas apenas em 2019 — média de uma a cada duas semanas.
O assunto é alvo de debates na educação pública do DF. O combate à violência doméstica, ao preconceito de gênero, à misoginia e ao sexismo entrou nas salas de aula como parte dos temas transversais do currículo da educação básica. Na visão de especialistas, o trabalho desse setor é um dos principais caminhos para incentivar o respeito às mulheres desde cedo e uma das maneiras de fazer as famílias se tornarem parte do processo de mudança.
Com a taxa alarmante de tentativas de feminicídio e de casos consumados, além das ocorrências de violência doméstica, a Secretaria de Educação percebeu a necessidade de aumentar as discussões acerca do tema. Por meio de parcerias com órgãos dos três Poderes no DF, a pasta pretende ampliar projetos em andamento e investir em novos. Neste ano, a partir de amanhã até sexta-feira, por exemplo, promoverá atividades com a comunidade de todas as regionais de ensino durante a Semana de Educação para a Vida. Na programação do evento anual, há um Dia D nas escolas para tratar do combate ao feminicídio.
Há 23 anos na rede pública e secretária executiva da pasta, Janaína Almeida considera que o primeiro desafio enfrentado na hora de se pensar na abordagem desses temas é se colocar no lugar dos professores que levarão o conteúdo para a sala. “Como educadores, não temos só a função de desenvolver a atividade. Precisamos trabalhar a função social da escola. Tratar de machismo, feminicídio e LGBTfobia ainda é muito difícil, porque esbarramos no acesso pessoal de cada um. No nosso universo de professores, também temos colegas que não vão querer abordar o tema. É necessário que o profissional sinta segurança e tenha conhecimento para falar do assunto”, analisa.
Para alcançar a comunidade escolar, ela relembra a necessidade de entender a realidade ao redor dos muros da escola. “O que o estudante leva, se for importante, será multiplicado na família. Queremos que ele seja agente e possa encorajar mais mulheres a buscarem seus direitos.”
O lado judicial
Uma vez que as investigações da Polícia Civil sobre o feminicídio terminam, o inquérito serve como base para uma denúncia apresentada pelo Ministério Público ao Tribunal de Justiça. Lá, os casos são julgados no âmbito da Vara do Tribunal do Júri. Até o último dia 15, 115 ações envolvendo ocorrências de feminicídio tramitavam na primeira instância do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT). As etapas são variadas e incluem desde processos na fase de denúncia até aqueles em que há recursos pendentes de julgamento.
O prazo para julgamento desses processos leva, geralmente, de quatro a cinco meses, de acordo com o juiz de direito e presidente da Vara do Tribunal do Júri de Taguatinga, João Marcos Guimarães da Silva. Ele considera um tempo rápido e afirma que a taxa de condenação dos réus é quase plena. “Em casos de homicídio, você já tem a materialidade do fato. Se houver autoria, a não ser que seja algo justificado, como uma legítima defesa claríssima, é difícil haver absolvição”, explica.
O magistrado avalia como fundamental o trabalho das varas de Violência Doméstica para evitar novos casos de feminicídio. “Se há uma tentativa de homicídio, o réu não vai responder ao processo em liberdade. Ele pode colocar uma tornozeleira eletrônica, mas é raro. Muitos agressores respondem presos. O trabalho nas varas de Violência Doméstica é rápido e tem medidas protetivas eficazes”, ressalta o juiz.
Denúncias
No Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), o Núcleo do Tribunal do Júri e de Defesa da Vida efetuou um levantamento do número de ações apresentadas pelo órgão desde a criação da Lei do Feminicídio, em 9 de março de 2015, até 8 de março de 2018. De 21 processos relacionados ao crime consumado, em 71,4% deles o réu foi condenado. Os demais casos ainda tramitam na Justiça. A pena média dos que cumprem prisão é de 19 anos.
Apesar dos números serem passíveis de contabilização, o fato de o setor ser novo ainda impede o acompanhamento de alguns casos, segundo o coordenador do núcleo, o promotor de Justiça Raoni Parreira. “Ocorrências envolvendo menores de 18 anos não aparecem, porque são pessoas inimputáveis. Mas veremos como melhorar a contabilização”, destacou.
Mesmo assim, Parreira ressalta que todos os réus julgados foram condenados. Diante disso, o promotor lembra que a aplicação de penas por si só é um passo essencial, mas não resolve o problema como um todo. “A Justiça do DF tem atuado com extremo rigor, de forma rápida e as penas têm sido compatíveis com a gravidade desse crime. No entanto, ainda temos de evoluir na prevenção, com monitoramento dos casos em que não há denúncias anteriores ao crime e estimulando vizinhos e conhecidos a denunciarem. Aí, entramos na questão da educação e da cultura. Há todo um complexo de ações públicas que precisam ser tomadas para combater isso”, pondera Raoni.
À espera de respostas
Dos nove casos de feminicídio registrados em 2019, três ainda não foram solucionados pela Polícia Civil. A corporação informou apenas que as investigações continuam. Para quem perdeu alguém querido, vítima desse crime e ainda não sabe o paradeiro do agressor, o sentimento é de indignação. Ytelo Gonçalves, 23 anos, é uma dessas pessoas.
Em 11 de março, a mãe dele, Cevilha Moreira dos Santos, 45, foi assassinada com uma facada pelo companheiro, Macsuel dos Santos Silva, 35. O suspeito fugiu e, até hoje, não foi encontrado. “Não temos notícias e parece que não há mobilização a respeito. Ficamos às escuras esperando que a justiça seja feita”, queixou-se o morador do Gama.
Integrante da Comissão de Direitos Humanos do Conselho Regional de Psicologia do Distrito Federal (CRP-DF), a psicóloga Sara da Silva Meneses afirma que o acolhimento por meio de uma rede de proteção é essencial para alcançar as vítimas ou quem presenciou o crime e prevenir novos casos.
A educação, segundo ela, também tem papel primordial nesse sentido. “A escola é o primeiro lugar de suporte para essas pessoas. Lá, aparece o que as crianças e adolescentes têm vivenciado em casa. É necessário haver uma escola, familiares e profissionais de saúde que apoiem essas vítimas para que elas se sintam encorajadas a denunciar”, pondera Sara.
A psicóloga explica que o atendimento de pessoas que perderam familiares em decorrência de crimes como feminicídio pode exigir intervenções em momentos de crise. Por isso, ela lembra que o Sistema Único de Saúde (SUS) conta com vários setores para dar apoio a mulheres e parentes de vítimas, e para tratar agressores. “Precisamos pensar no suporte afetivo, manter a rotina da pessoa, e não se pode pensar na permanência dessa pessoa no local onde tudo aconteceu”, assinala.
MEMÓRIA
Ocorrências
Dos nove feminicídios registrados no Distrito Federal até agora, três permanecem sem solução. Relembre os casos abaixo:
Crimes em aberto
4 de janeiro
O primeiro feminicídio de 2019 segue sem solução. O caso aconteceu na Quadra 9 do bairro Engenho Velho, na Fercal. Moradores da região acionaram as polícias Civil e Militar para apurar uma ocorrência de assassinato. Ao chegarem, as equipes encontraram o corpo de Patrícia Alice de Souza, 23 anos, atingida por tiros nas costas. A vítima estava desaparecida havia três dias, segundo depoimento de familiares. A Polícia Civil não deu detalhes sobre as causas nem divulgou nomes de suspeitos. No entanto, investigadores da 35ª DP (Sobradinho 2) trabalham com a hipótese de feminicídio e ainda apuram o caso.
11 de março
A dona de casa Cevilha Moreira dos Santos, 45, foi assassinada pelo companheiro, Macsuel dos Santos Silva, 35. Ela foi encontrada morta na quitinete onde os dois moravam, na Quadra 5 de Sobradinho 1, com uma facada no peito. A vítima apresentava lesões no rosto e sinais de estrangulamento. Após matar Cevilha, Macsuel tentou deixar o local no carro da mulher, mas não conseguiu ligar o veículo e fugiu a pé. Ele não tinha antecedentes criminais e, no currículo dele, a última profissão registrada era de brigadista. A 13ª DP (Sobradinho) está à frente das investigações. Macsuel ainda não foi encontrado.
14 de abril
Grávida de três meses do quinto filho, Luana Bezerra da Silva, 28, levou ao menos quatro facadas nas costas e uma, fatal, no pescoço. O crime ocorreu na AR 5, em Sobradinho 2. O suspeito, Luiz Filipe Alves de Sousa, 20, fugiu após o crime. O casal tinham um relacionamento de três anos e, na noite anterior ao crime, brigaram em frente a uma das filhas do casal. A mulher foi atacada pelo marido por trás, quando terminava de servir almoço para às duas filhas de Luana, uma delas era fruto do relacionamento com o suspeito. A 35ª DP (Sobradinho 2) ainda apura o caso. O autor está foragido.
Outros registros
5 de janeiro
O segundo caso foi registrado na Quadra 8 do Setor Oeste do Gama. O ajudante de pedreiro Thiago de Souza Joaquim, 33, matou a companheira, a dona de casa Vanilma Martins dos Santos, 30, com uma facada no tórax. O autor do crime havia saído para pescar e voltou bêbado, de madrugada. O casal teria discutido e Thiago arremessou uma faca contra Vanilma. Ele chegou a levá-la para o Hospital Regional do Gama (HRG), onde a vítima morreu. O agressor fugiu e foi preso dois dias depois.
28 de janeiro
A dona de casa Diva Maria Maia da Silva, 69, foi assassinada com ao menos cinco tiros pelo companheiro, o autônomo aposentado Ranulfo do Carmo Filho, 72. O autor do crime também disparou três vezes contra um dos filhos do casal, Régis do Carmo Corrêa Maia, 46. Diva Maria e Ranulfo estavam juntos havia 50 anos e moravam em um apartamento da 316 Norte. Segundo vizinhos, ameaças e agressões eram constantes contra a mulher. Antes do crime, pai e filho discutiram, ao que Ranulfo foi ao quarto e voltou com um revólver. Depois de atirar contra o filho e a mulher, ele fugiu. Policiais perseguiram o assassino, que confessou o crime e foi preso.
31 de janeiro
A servidora aposentada da Secretaria de Educação Veiguima Martins, 55, foi morta pelo marido, José Bandeira e Silva, 80. A vítima havia decidido dar um fim ao relacionamento com o servidor público aposentado um dia antes do crime. No entanto, José matou a companheira a facada e, depois, ateou fogo ao apartamento onde os dois viviam, na 310 Norte. Segundo a polícia, ele teria tentado simular um incêndio acidental para apagar as provas. Entretanto, inalou muita fumaça e morreu por intoxicação. Casada com José desde 2008, Veiguima relatava situações de abuso e agressão desde 2014.
17 de março
Maria dos Santos Gaudêncio, 52, foi encontrada morta dentro de casa, no bairro Fazendinha, no Itapoã, dois dias depois de ser assassinada pelo namorado, o cabeleireiro Antônio Pereira Alves, 44. Os dois estavam juntos havia cerca de um ano. A vítima esfaqueada e apresentava lesões na cabeça, segundo a Polícia Civil. Depois de cometer o crime, o suspeito pediu demissão e enviou uma mensagem ao chefe dizendo ter ganhado na loteria. Ele foi encontrado pouco mais de uma semana depois, em Chapadinha (MA), e encaminhado à 6ª DP (Paranoá), que investigava o caso.
31 de março
A estudante Isabella Borges, 25, foi assassinada pelo ex-marido Matheus Galheno, 22. Ela morava com a família em uma casa no Paranoá e tinha um casal de gêmeos de um ano com o vigilante. Separados havia cerca de um mês, o casal ainda tinha uma relação próxima. Matheus ficava com as crianças durante o dia e levava Isabella para o estágio, no Plano Piloto. Na data do crime, os dois conversavam na sala. Minutos depois, a irmã de Isabella ouviu gritos e tirou uma das crianças do local. A vítima segurava a filha no momento em que foi atingida por um dos dois disparos. Matheus se matou em seguida. A 6ª DP (Paranoá) assumiu as investigações para identificar a origem da arma e se alguém ajudou Matheus.
21 de abril
Eliane Maria Sousa de Lima, 49, morreu na casa da irmã, na Quadra 11 do Setor Leste do Gama. Ela foi esfaqueada no tórax pelo cunhado, o açougueiro Josué Pereira da Silva Filho, 47. Ele ameaçava a mulher, Paula Otacilio de Lima, 43, durante uma briga entre os dois. Eliane ficou entre o casal para defender a irmã, mas acabou ferida e morreu na hora. Agentes da 20ª Delegacia de Polícia (Gama) prenderam Josué em flagrante. Ele foi hospitalizado depois de vizinhos tentarem linchá-lo no momento em que tentava fugir. O agressor recebeu alta e foi encaminhado à carceragem da Polícia Civil. Durante a audiência de custódia, o juiz converteu a prisão em preventiva, sem prazo para ser encerrada.
Jéssica Eufrásio