(Rede Brasil Atual, 23/01/2016) Projeto de lei que prevê o desembarque de mulheres fora do ponto de ônibus após às 22h pode ser aprovado em São Paulo. Apesar de somar ao combate à violência de gênero, matéria é contestada
Segundo dados da ONU, sete em cada dez mulheres no mundo já foram ou serão violentadas em suas vidas. O Brasil, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE) e da Organização Mundial da Saúde (OMS), é o sétimo país com maior número de assassinatos de mulheres. Tal realidade resultou em leis específicas para defender as mulheres de tal naturalização da violência.
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Uma destas leis está ganhando espaço em diversas cidades do país, e pode chegar à capital paulista. De autoria do vereador Toninho Vespoli (PSOL), o Projeto de Lei 6/2016 autoriza mulheres a desembarcarem de ônibus mesmo fora dos pontos determinados após às 22h. “É uma medida pequena, mas que pode garantir maior segurança para muitas mulheres que trabalham e estudam até tarde”, argumenta Vespoli.
A lei deve passar ainda neste semestre por votação no plenário da Casa e, após aprovada, terá um prazo de 90 dias para ser regulamentada pelo Executivo. O projeto ainda prevê divulgação em meios de comunicação para levar tal direito ao conhecimento da população. Cidades do Rio de Janeiro, Paraná, Rio Grande do Sul, Pernambuco e São Paulo já contam com dispositivos legais similares.
Para a defensora pública e coordenadora do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher, Ana Rita Souza Prata, tal medida possui caráter “paliativo à violência de gênero que acontece contra as mulheres nas ruas e nos transportes públicos, que ainda é necessária até que se tenha uma resposta efetiva por parte do Estado”, disse em entrevista para à RBA.
“O Estado deve enfrentar a questão da violência de gênero como algo que decorre de uma cultura machista. Aceitar isso, entender e, a partir daí, criar políticas para desconstruir tal cultura”, argumentou a defensora, sobre caminhos possíveis para reverter tal problema. “Só assim vamos conseguir de fato diminuir a violência que ainda é bastante aceita”, concluiu.
É essencial entender, como alerta Ana Rita, que a medida prevista na legislação que aguarda apreciação pelos vereadores paulistanos deve ser pensada como instrumento de empoderamento e de escolha da mulher. “Claro que não podemos imputar à mulher a responsabilidade de ser ou não vítima. Não podemos entender a lei desta forma. Se a mulher não desceu em um local ‘x’, então é culpa dela ser vítima? Devemos rechaçar este entendimento”, afirmou.
Contraponto
A medida, aplicada de forma correta e com consciência por parte da sociedade, pode se correlacionar a outros instrumentos legais como a Lei Maria da Penha (Lei Nº 11.340) , que completa 10 anos em 2016 e a Lei do Feminicídio (Lei Nº 13.104), aprovada em 2015. Ambas as matérias visam aumentar o rigor nas punições contra crimes associados à questão de gênero, promulgadas como forma de prevenir a ocorrência de atos violentos contra as mulheres. Porém, existem controvérsias acerca da eficácia de certos dispositivos.
A Lei do Feminicídio, aprovada em março do ano passado, é instrumento de questionamento de Maíra Cardoso Zapater, pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre o Crime e a Pena, da Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo. “Avalio muito mal esta lei. Não existem evidências de que agravar penas dissuade os criminosos. A ação criminal não reduz o crime. Chamar assassinato de mulheres de feminicídio não leva ao resultado de menos mulheres mortas e sim, mais punição”, afirmou.
Seguindo a mesma lógica de enfrentamento da violência contra a mulher na raiz do problema, a pesquisadora minimiza os efeitos práticos do projeto de lei de Vespoli que, apesar de soar interessante, se afasta, segundo explica, a principal ameaça à integridade das mulheres.
“Não sei se estamos mirando para o lado certo. Os dados de violência sexual contra mulheres mostram que esses ataques de agressores desconhecidos nas ruas são estatisticamente menores, em relação a agressões de pessoas conhecidas – o parceiro ou parceira, pai, irmão, parente, amigos e vizinhos”, argumenta Maíra.
No entanto, ela vê pontos positivos na proposta de lei, com ressalvas. “Lugares escuros e vazios tendem a ser perigosos tanto para homens quanto para mulheres.”
Para a pesquisadora, outras medidas poderiam ser tomadas para combater a violência contra as mulheres no país. “Se existe uma notícia dizendo que existem lugares perigosos, escuros, por que não investir em iluminação e policiamento?”, questionou. “Segurança pública é sempre um aspecto mais amplo”, concluiu.
Violência sensível
Políticas públicas voltadas à segurança da mulher, em conjunto com iniciativas civis de empoderamento feminino podem estar refletindo na percepção da violência, como retoma Prata. “Há mais consciência de que certas condutas são de fato violentas, e que anteriormente eram toleradas. A partir daí, claramente há mais estatísticas”.
Contudo, é notável que o número de homicídios relacionados à questão da mulher também cresce de forma seletiva. De acordo com o Mapa da Violência de 2015, houve queda no índice de homicídios entre brancas – de 1.747 casos em 2003 para 1.576 em 2013. Já entre as negras, o número cresce: de 1.864 a 2.875 episódios no mesmo período.
“Racismo e recorte de classes ainda não são levados em conta na hora de pensar políticas públicas para mulheres”, afirmou a defensora Ana Rita Prata.
Pensar nas especificidades da violência contra a mulher é o caminho para o enfrentamento, como indica Maíra Zapater. “Violência de gênero tem vários tipos de manifestação. Para cada uma, um tipo de política deve ser criada. O dado sobre a violência contra mulheres negras surpreendeu até quem trabalha na área de gênero. É preciso analisar com cautela uma série de dados, e então pensar em políticas públicas”.
De acordo com a pesquisadora, a aplicação da Lei Maria da Penha com mais rigor ao texto da lei pode trazer resultados eficazes neste campo. “Esta lei tem várias medidas que não são corretamente implementadas. Quem trabalha na área acaba se fixando muito mais na questão policial, mas a lei também prevê campanhas, atendimento psicológico, social, médico, jurídico e mais uma série de medidas que possibilitam às pessoas envolvidas romper com este ciclo de violência”, concluiu.
Gabriel Valery
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