Entidades de defesa de direitos das mulheres defendem que não haja prazo de validade para as medidas e que seja reconhecida a natureza autônoma delas
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) discute um caso que afetará a forma como o Judiciário tem aplicado um trecho da Lei Maria da Penha – o que estabelece medidas de proteção para a vítima de violência doméstica contra o agressor. Segundo o Ministério Público, a ONG Me Too Brasil e parte dos especialistas, o tribunal corre o risco de dificultar a proteção de mulheres vítimas no País. Não há consenso jurídico, no entanto, em torno da discussão.
O caso em debate é um recurso do Ministério Público de Minas Gerais contra decisão do Tribunal de Justiça. O relator do recurso no STJ, ministro Joel Paciornik, entendeu que o debate deveria ser levado à Terceira Seção para dar entendimento uniforme ao tema, que tem sido recorrente no Judiciário. Até hoje, a Quinta e a Sexta Turmas do STJ, que discutem matéria penal, têm posições divergentes.
O TJ-MG aceitou parcialmente o recurso de um agressor de mulher vítima de violência doméstica e estabeleceu que as medidas protetivas impostas a ele teriam prazo de 90 dias. Depois disso, a situação deveria ser reavaliada.
O MP, por sua vez, defende que não haja prazo determinado no qual a vítima precise comprovar que o risco ainda existe. A visão da promotoria é a de que as medidas protetivas devem valer enquanto durar a situação de ameaça. Ela só deveria se encerrar, portanto, quando uma das partes for ao Judiciário e comprovar que não há mais necessidade da manutenção.
O promotor de Justiça Felipe Faria, assessor especial da Procuradoria-Geral de Justiça de Minas, afirma que estipular prazo para que a medida protetiva expire é submeter a vítima a uma nova violência, desta vez por parte do Estado.
“Fazer a vítima, já fragilizada, precisar periodicamente voltar aos órgãos para fazer novos pedidos é gerar um ciclo de violência institucional, uma revitimização. Além disso, seguindo decisões anteriores, medidas protetivas têm de durar enquanto a situação persistir, não têm prazo determinado. Pode durar uma semana, um mês, ou cinco anos”, diz o promotor.
Para ele, “isso tem o condão de desestimular e afastar as vítimas dessa estrutura estatal, que está aqui para resguardá-la”.
A necessidade de comprovar que o risco de violência permanece também é considerada inviável. Isso porque muitas vezes, segundo o MP, o que impede a vítima de sofrer nova violência é justamente a medida protetiva em vigor. Uma vez expirada, a violência volta.
“Há receio de não conseguir demonstrar de tempos em tempos a persistência do risco. Pode haver transferência de ônus da prova quase intransponível”, concorda a sócia de direito penal do Mattos Filho e uma das responsáveis pelo caso em nome do Me Too, Flávia Leardini.
O Me Too Brasil tenta ingressar no debate no STJ como amicus curiae no processo – a expressão latina significa “amigo da corte” e é usada para que interessados no resultado da causa, que não são as partes, possam ser ouvidos pelo Judiciário. Para isso, a ONG contratou o escritório Mattos Filho, por meio do setor de advocacia pro bono da banca. O pedido ainda não foi analisado pelo STJ.
“A Lei Maria da Penha nunca foi criminal. É uma legislação integral de proteção e defesa das mulheres em situação de violência doméstica intrafamiliar”, diz Marina Ganzarolli, advogada e presidente do Me Too Brasil.
“Quando a Lei Maria da Penha foi desenhada, falava em varas (de Justiça) híbridas, para um único juiz definir o divórcio, a guarda, mas também cuidar da questão criminal, da lesão corporal, da ameaça. Só temos vara híbrida em um Estado”, afirma.
Para Marina, não só há dificuldade em implementar de modo integral a legislação de proteção à mulher, como o Judiciário pode enfraquecer um dos instrumentos mais eficientes: as medidas protetivas.