Na madrugada de sábado 28 de junho de 1969, um grupo de pessoas LGBTIs protagonizou a Revolta de Stonewall contra a violência policial nas ruas de Nova Iorque, nos Estados Unidos. Nessa época, era ainda maior o número de internações compulsórias e abusos do Estado, materializado principalmente pela intensa criminalização. Com tantas batidas policiais nos bairros e espaços de socialização que frequentavam, muitas vezes verdadeiros refúgios para a vivência livre de suas sexualidades e identidades de gênero, a população LGBTI decidiu resistir e se levantar contra a violência policial.
(Agora É que São Elas, 26/06/2019 – acesse no site de origem)
Relatos de testemunhas dão conta de que o estopim para a reação contra a batida policial inesperada no Stonewall Inn, bar localizado em Greenwich Village, teria sido a prisão de uma mulher lésbica após inúmeras tentativas de resistência e agressões por parte da força policial que incluía, dentre seu procedimentos, checagem do “sexo” das pessoas presentes, muitas delas trans, drags, gays e lésbicas cujas diversas (des)conexões entre sexo, gênero, comportamento e desejo extrapolavam o regime de heteronormatividade. Quando finalmente os policiais conseguiram conduzir esta mulher, cuja identidade é motivo de controvérsia, para a viatura, ela teria dito à multidão revoltada “e vocês? Não vão fazer nada?” – dando início aos eventos hoje reconhecidos como marco histórico fundamental na organização das ações e da luta LGBTI.
A atuação de mulheres como Sylvia Rivera, Marsha P. Johnson e Stormé DeLarverie nesta noite e nos eventos que a sucederam merece destaque. Comumente chamados de “distúrbios de Stonewall”, tais ocorrências foram, nas palavras de Stormé, mulher lésbica e negra: “uma rebelião, uma insurreição, uma desobediência civil – não foi uma porcaria de distúrbio”. As travestis Sylvia e Marsha seguiram denunciando a violência do Estado e lutando por moradia. Elas organizaram a Casa S.T.A.R., sigla em inglês para “Ação das Travestis de Rua Revolucionárias”, um lugar de acolhimento para pessoas trans e de fortalecimento dos laços de solidariedade em prol da sobrevivência da comunidade.
Hoje, no Brasil e no mundo, comemoramos a data que completa 50 anos e, no entanto, os meios de comunicação insistem no apagamento histórico dessas mulheres que pautaram mudanças estruturais urgentes e ainda por conquistar. No último domingo, o programa Fantástico, exibido pela Rede Globo, ainda que tenha dado voz a ativistas importantes nessa luta, apresentou uma narrativa desse episódio histórico cuja análise crítica é fundamental para a compreensão e organização das frentes de luta feminista, antirracista e LGBTI.
A referida reportagem sequer cita os nomes de Marsha e Sylvia. Em uma das entrevistas, somos confrontadas com a afirmação de que o movimento LGBTI deve à banda Beatles, pela androginia expressa por seus “cabelos longos”, seus avanços e a paulatina ocupação dos debates públicos. Este tipo de leitura reforça a hegemonia de homens brancos cisgêneros e heterossexuais, mesmo quando o assunto é um levante LGBTI contra a violência policial e a criminalização de seus corpos e formas de vida.
Estávamos no fim dos anos 60 e início dos anos 70, no âmbito do que se considera a segunda onda do movimento feminista, com os movimentos de mulheres desenvolvendo e tensionando a ferramenta conceitual do gênero na academia e em diversas organizações políticas. Tratava-se de uma época na qual ainda se colhiam as consequências da afirmação de Simone de Beauvoir segundo a qual “não se nasce mulher. Torna-se” (1949). Em 1963, Betty Friedan já havia publicado seu livro “A mística feminina”, denunciando os estereótipos ligados à mulher como “esposa e mãe zelosa”. Em 1969, ano da fatídica rebelião, Monique Wittig, feminista lésbica publica “Les guérillères”, ficção repleta de críticas à sociedade patriarcal e aos papéis de gênero sexistas da época. No ano seguinte, são publicados “A mulher eunuco”, de Germaine Greer e “Política sexual”, de Kate Millett.
Além disso, muitas mulheres negras estiveram à frente dos movimentos pelos direitos civis na década de 60, cujas táticas e alianças promovidas certamente contribuíram para o clima que se expressa também em Stonewall. Em “Uma declaração Negra Feminista”, produzida pela Coletiva do Rio Combahee (1977), grupo feminista negro da cidade de Boston, lemos: “A política feminista negra também tem uma conexão evidente com os movimentos para a libertação negra, em particular os das décadas de 60 e 70. Muitas de nós participamos nos movimentos (Direitos Civis, Nacionalismo Negro, As Panteras Negras) e todas nossas vidas foram afetadas e transformadas por suas ideologias, suas metas, e as táticas empregadas para alcançá-las. Nossa experiência (…) nos levou a ver a necessidade de desenvolver uma política que fosse antirracista, à diferença das mulheres brancas, e antissexista, à diferença dos homens negros e brancos.” – mas aparentemente nada disso foi tão importante para o movimento LGBTI quanto as longas cabeleiras dos rapazes de Liverpool.
A luta LGBTI sempre teve marcos estruturais pautados pelas mulheres, que são apagadas da história. Embora as apropriações mercadológicas e as conivências com o patriarcado expresso pela hegemonia de homens brancos e ricos no próprio movimento LGBTI digam o contrário, Stonewall sempre foi sobre a violência policial. Não podemos perder esse horizonte, porque esta é bandeira central na luta feminista e antirracista. O marco dos 50 anos de Stonewall tem que nos dizer sobre a impossibilidade de assumir tais frentes de atuação como essencialmente distintas. Mais do que a inclusão da população LGBTI no rol dos indivíduos aptos a gozar de direitos como o casamento e a adoção, é preciso compreender como estão entrelaçados os dispositivos da cisheteronormatividade e as retóricas e práticas necropolíticas que ameaçam as democracias liberais por toda a parte, o que significa construir movimentos políticos que para além de identitários, propõem novos modelos de sociedades.
Não à toa que mulheres lésbicas, em 13 de abril de 1980, estenderam a faixa “Pelo prazer lésbico” contra a violência policial, na frente do Teatro Municipal, em São Paulo. Em plena ditadura civil-militar no Brasil, as lésbicas se uniram aos movimentos negros e de mulheres para dizer basta à violência policial praticada pelo delegado Richetti. Nas ruas, era comum ouvir: “É sapatão? Pro camburão”. Ou quando nós, lésbicas, formamos uma ala no 8 de março deste ano com a faixa “Lésbicas contra a militarização”, denunciando a violência do Estado praticada no Rio de Janeiro, principalmente contra essa política genocida disfarçada de política de segurança pública. Em 2019, são 3 anos do assassinato de Luana Barbosa, lésbica negra pobre que foi barbaramente espancada por policiais militares e, consequentemente, morta. Joyce Cristina, este ano, foi encontrada morta na linha de trem em Madureira. Marielle Franco perguntou e seguiremos perguntando: “quantos de nós têm que morrer para essa guerra acabar?”. Stonewall será sempre um guia contra a violência policial, contra a militarização da vida, contra o genocídio da população negra. Que esta data traga a oportunidade para discutirmos as tensões e alianças possíveis para nós, mulheres lésbicas e feministas, com o movimento LGBTI. Que a sociedade, a mídia e os nossos companheiros compreendam que há muita sapatão, mulheres trans, travestis, pessoas negras e indígenas nessa construção histórica e que ainda há muito a ser feito.
Camila Marins é jornalista, ativista feminista negra lésbica e uma das editoras da Revista Brejeiras.
Roberta Cassiano é professora de filosofia, ativista feminista lésbica e uma das editoras da Revista Brejeiras.