(O Globo, 26/05/2015) “Quando a polícia entrou na minha casa, eu estava na cama com meu companheiro”, diz camaronês que ficou 6 meses na cadeia
Mesmo sem uma lei que criminalize a homofobia, o Brasil tem servido de refúgio a estrangeiros perseguidos em seus países de origem por sua orientação sexual. O Comitê Nacional para Refugiados (Conare), do Ministério da Justiça, já concedeu abrigo a pelo menos 17 pessoas e analisa outros 23 casos. A maioria vem de países onde a homossexualidade é considerada crime e pode ser punida com prisão e pena de morte. Ao mesmo tempo em que abriga com segurança esses refugiados, o governo tem pelo menos seis brasileiros sob proteção do Estado por serem ativistas dos direitos de lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e intersexuais (LGBTI) e, por isso, jurados de morte. Eles fazem parte do Programa de Segurança de Defensores de Direitos Humanos, da Presidência da República.
— Na África não é como no Brasil. Quando a polícia entrou na minha casa, entraram todos os vizinhos. Eu estava na cama e meu companheiro estava lá. Apanhei na frente de todos e havia muitos gritos de xingamentos pelo fato de eu ser homossexual. Fiquei seis meses preso e apanhei na cadeia — conta o camaronês Oscar, que preferiu não divulgar seu sobrenome.
Em Camarões, a homossexualidade é crime e pode render cinco anos de prisão, além de uma multa equivalente a R$ 8 mil. Oscar não dormia à noite na prisão por medo de ser atacado, violentado e apanhar. Separado à força de seu companheiro, que passou dois anos em outra prisão, encontrou uma advogada de direitos humanos que, com a ajuda de um médico, forjou um laudo dizendo que o jovem não poderia ficar encarcerado por ter tuberculose. Tão logo deixou a cadeia, foi ajudado a fugir para outro país da África até conseguir refúgio no Brasil.
— Eu quis vir para cá porque acho o Brasil melhor. Não sofri preconceito por ser homossexual, nem por ser africano ou refugiado — comemora o jovem, que trabalha em um hotel de São Paulo e recebe apoio da Cáritas, entidade católica que trabalha com o Alto Comissariado da ONU para os Refugiados (Acnur). Agora, aos 26 anos, junta dinheiro para custear um curso de aviação.
— Quero ser comissário de bordo, viajar pelo mundo todo. Mas nunca poderei voltar a Camarões — conta o jovem que, desde que foi preso, há cerca de três anos, nunca mais viu os pais ou o companheiro: — Ele conseguiu sair e foi para a Bélgica. Agora, somos amigos apenas.
No Brasil, a homossexualidade não é crime, como em Camarões ou no Irã, onde a pena para homossexuais pode ser a morte. Mas isso não significa que o país seja exemplo de tolerância. Ativistas dos direitos LGBTI têm sido ameaçados e constrangidos. A ouvidora da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, Irina Karla Bacci, informou ao GLOBO que seis ativistas vivem sob proteção por terem suas vidas ameaçadas. Os casos são de três estados: Paraná, Paraíba e Piauí. Diferentemente do serviço de proteção à testemunha, em que a pessoa ameaçada pode ter de deixar sua cidade para ter segurança, a proteção aos defensores de direitos humanos tenta evitar mudar a rotina do ativista.
— Em casos extremos, propõe-se a proteção policial permanente. Outra medida pode ser retirar o ativista temporariamente de seu local de atuação, mas não se tira o defensor de seu estado porque isso acaba fortalecendo a ação do ameaçador, é exatamente o que o ameaçador quer — diz Irina, para quem a falta de um lei específica contra a homofobia “impõe uma série de violências” à população LGBTI.
Apesar dessas ameaças e de não haver legislação que criminalize a homofobia, tanto a ouvidora quanto o secretário nacional de Justiça, Beto Vasconcelos, que preside o Conare, destacam que o Estado aqui não persegue os homossexuais. Isso pode garantir a segurança dos refugiados que escapam de leis capitais, geralmente de países da África ou que vivem sob regimes islâmicos radicais. Com o avanço desses grupos, a situação dos homossexuais fica mais crítica. Oscar, por exemplo, diz que teve sorte de deixar Camarões e teme pela chegada do grupo nigeriano Boko Haram, que tem feito incursões violentas no país, ameaçando não só a população LGBTI como as mulheres.
— O Brasil, junto com um grupo significativo de países de todo o mundo, reconhece a perseguição por orientação sexual e gênero como um critério para concessão de refúgio. Há um acordo de que, em dez anos, todos os países da América Latina e Caribe se comprometam a implantar mecanismos para isso (a concessão desse tipo de refúgio). Os julgamentos para a concessão são feitos com elementos fáticos e comprovação da perseguição — afirma o secretário nacional de Justiça.
SITUAÇÃO BRASILEIRA NÃO JUSTIFICA REFÚGIO
No Brasil, não há registro de homossexuais ou pessoas que se sintam perseguidas por sua orientação sexual que tenham obtido direito a refúgio em outro país. O presidente da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), Carlos Magno Fonseca, afirmou que a entidade já recebeu pedidos dessa natureza, mas nunca expediu um pedido de concessão de refúgio às Nações Unidas.
— Mesmo com os problemas do país, a gente vive em uma democracia. Uma coisa é a perseguição por determinados grupos, outra é a perseguição do Estado. É difícil fazer um parecer que ateste que a pessoa precisa se refugiar em outro país. Mas há casos graves de perseguição a brasileiros, que são encaminhados à ouvidoria da Secretaria de Direitos Humanos. As lideranças LGBT, muitas vezes, ficam muito vulneráveis — diz Carlos Magno.
Para ele, o Brasil não deveria apenas receber pessoas perseguidas por sua orientação sexual, mas também romper relações com países que criminalizam a homossexualidade. Isso mesmo sem ter uma legislação que puna a homofobia:
— O Brasil está devendo, mas pode fazer uma fala mais dura na ONU.
O secretário nacional de Justiça informou que o país se posiciona nos organismos internacionais “contra a abolição da pena de morte e pela eliminação de todos os tipos penais por orientação sexual”.
Tatiana Farah
Acesse o PDF: Brasil dá abrigo político a estrangeiros perseguidos por sua orientação sexual (O Globo, 26/05/2015)