(UOL, 07/04/2016) Nos últimos quatro anos, Valéria Melki Busin, psicóloga social e docente na Unemat (Universidade do Estado de Mato Grosso), mergulhou no mundo particular de oito travestis para sua tese de doutorado: “Morra para se Libertar – Estigmatização e Violência contra Travestis”. Apresentado no IP (Instituto de Psicologia) da USP (Universidade de São Paulo), em abril de 2015, o texto fala sobre as dificuldades dessas pessoas viverem em uma sociedade na qual sair do padrão “pré-estabelecido” gera (muita) violência.
De acordo com a psicóloga, os dados sobre a hostilidade que essas mulheres enfrentam são subestimados, mas, segundo relatório anual do GGB (Grupo Gay da Bahia) de 2013, 40% dos assassinatos de travestis no mundo acontecem no Brasil e, em sua maioria, são crimes de ódio.
Valéria é ativista do movimento LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros) há mais de 15 anos, mas antes –e durante—o trabalho na militância vivenciou experiências traumáticas com travestis, como quando socorreu uma travesti alvo de uma garrafada, na região central de São Paulo.
Diante das histórias tristes que presenciou, Valéria decidiu, por meio de seu estudo, tentar entender por quais motivos essa violência é aceita pela sociedade.
“Elas escolheram a capital paulista porque aqui conseguem certa invisibilidade em alguns espaços. E, sobretudo, têm maior possibilidade de socialização, o que as tira da solidão tremenda na qual são obrigadas a viver”, afirma sobre as mulheres que entrevistou.
A seguir, trechos das histórias de cinco travestis entrevistadas para a tese.
Roberta Barretto, 34
Roberta saiu da casa dos pais aos 13 anos. Antes dos 18, começou a se prostituir porque acreditava que só existia travesti que se prostituía. Quando tinha cerca de 20 anos, presenciou o assassinato de uma travesti na região do Jockey, em São Paulo, onde fazia ponto.
Sofreu três agressões físicas em espaços públicos: levou um soco na cabeça dentro de um ônibus, um tapa na cara quando andava em uma passarela e, a pior de todas, foi vítima de pauladas e chutes de seis homens, em plena luz do dia. Caminhando com uma amiga também travesti, em um parque, foi cercada. Cada uma correu para um lado, Roberta rolou um barranco, caiu no chão com uma perna quebrada e foi agredida violentamente, enquanto era humilhada.
A violência foi interrompida por um garoto acompanhado por um cão da raça pit bull, que fez os homens fugirem. Depois de ajudá-la a se levantar, ele mostrou uma arma na cintura. Disse que não deveriam apenas tê-la agredido, mas matado, e retomou as agressões. Roberta ficou 15 dias em coma no hospital.
Rebecca Thyfany , 24
Quando ela tinha noves anos, o pai –que era homofóbico e costumava agredi-la—morreu e a mãe casou-se novamente. Do padrasto, ela apanhava todos os dias, sem motivo aparente. Ele a mandava virar “homem”, chamava de “bichinha”.
Parou de estudar antes de completar o ensino fundamental. Aos 17, duas amigas também travestis a levaram para fazer programa, mas para Rebecca era preciso ter envolvimento amoroso para fazer sexo. Por conta disso, sofreu discriminação das próprias amigas, que a chamavam de “veadinho”.
A caminho de uma balada, por insistência de uma amiga, Rebecca pegou carona com um desconhecido. O homem a ameaçou com uma arma e exigiu que ela fizesse sexo com ele, bateu nela e ainda a humilhou, dizendo que estava fazendo isso para que ela aprendesse a ser travesti –como se ser travesti fosse sinônimo de prostituição.
O episódio fez com que ela passasse a ter muito medo de andar sozinha na rua. Para a psicóloga Valéria, ela disse que o que mais fez na vida foi chorar e sentir vontade de morrer. Como não conseguia se prostituir, começou a entregar folheto nos sinais de trânsito, vender bala em ônibus, entre outros trabalhos informais.
Hoje, Rebecca frequenta o EJA (Ensino de Jovens e Adultos) e na própria escola também já foi motivo de piada. “Mas ela diz que não abaixa mais a cabeça. Em uma das vezes, ao ser alvo de risadas, foi até a diretora do curso denunciar a agressão. Coisa rara de se ver, a diretora a apoiou.
Apesar de morar com os irmãos e cuidar dos sobrinhos, Rebecca diz que se sente muito sozinha, pois nunca teve namorado.
Sharon Pinheiro, 24
Aos sete anos, o pai a pegou dançando com uma calcinha da mãe. Por conta disso, pai e mãe a surraram com fios elétricos. Os irmãos deram cocô para ela comer como se fosse chocolate, quando tinha cerca de nove anos. Aos 18, saiu do interior de São Paulo para morar na capital. Quando fazia ponto na avenida Cruzeiro do Sul, na zona norte da cidade, sofreu um ataque de um grupo de rapazes, que bateram nela com pedaços de pau. Teve fraturas no crânio e muitos ferimentos e ficou 15 dias internada em um hospital.
Quando saiu do hospital, decidiu trabalhar para uma cafetina para ter proteção. Em seu depoimento a Valéria, contou que viu a cafetina cortar os seios de uma travesti, que não havia conseguido pagar um empréstimo para colocar próteses de silicone. Depois disso, Sharon decidiu sair da prostituição, foi morar em albergues e, em uma sessão de cinema feita para moradores de rua, conheceu o marido.
Iara Pereira, 40
Iara tinha sete anos quando teve sua primeira relação sexual. Foi com um garoto de uns 14 anos, vizinho da família. Para Valéria, afirmou que não houve abuso, pois ela mesma insistiu para ficar com ele. Sua feminilização começou a se concretizar quando tinha 16 e ficava com um pastor evangélico, que era casado e tinha filhos.
Quando estava no segundo ano do ensino médio, ela e mais duas amigas passaram a ser bastante hostilizadas na escola, especialmente porque já tomavam hormônios e estavam ficando cada vez mais femininas. A perseguição culminou com uma “chuva” de pedras na porta do colégio. Depois da violência, elas pararam de estudar.
Algum tempo depois, quando tinha 18, Iara passou por mais um episódio traumático por conta de uma amiga ter furtado um sutiã em uma loja. As duas foram obrigadas a limpar a loja, apanharam de quatro seguranças. Iara apanhou mais porque não chorava. Tiveram de tirar as roupas, que os seguranças molharam antes de devolver, quando finalmente foram liberadas.
Cynthia Toledo, 65
Cynthia perdeu os pais na adolescência e passou a fazer serviços domésticos em casas de parentes em troca de hospedagem. Para ela, se fosse rica ou famosa, não ficaria tão desamparada e seria aceita, independentemente de ser negra e homossexual.
Estava morando no Rio de Janeiro com uma tia –que pagava sua escola, mas a fazia de empregada porque havia notado seu jeito feminino—quando decidiu fugir. Ninguém da família a procurou. Depois de um tempo trabalhando com cafetinas, conseguiu emprego como faxineira em uma loja. Por achá-la bonita, a dona a incentivou a fazer um teste para ser vendedora e ela conseguiu a vaga.
Conheceu um estilista que a levou para São Paulo para trabalhar como modelo, mas, como o dinheiro não era suficiente, arrumou emprego em um shopping. Após três anos trabalhando com documentos falsos, saiu expulsa e humilhada após as outras vendedoras descobrirem que era travesti –e sem nenhum direito porque a pessoa registrada não existia.
Foi então que, por conta dos contatos em desfiles, surgiu a oportunidade de ir para a Europa, onde foi ser prostituta de luxo. Cynthia fazia “michê”, mas fez questão de estudar assim que chegou na Europa. Lê e fala fluentemente francês e italiano. Hoje, diferentemente da maioria das travestis que conhece, Cynthia tem um emprego estável. Em seu depoimento, disse que a falta de oportunidades para travestis é uma violência sem nome.
Thais Carvalho Diniz
Acesse no site de origem: Em tese, psicóloga relata a vida marcada pela violência de travestis (UOL, 07/04/2016)