(Lado Bi, 24/08/2015) A bióloga e ativista trans Julia Serano analisa as raízes dos preconceitos contra transexuais, explica porque a mulher trans se encontra no ponto de encontro de vários tipos de discriminação, e propõe que apenas com o verdadeiro feminismo pessoas de todos os gêneros poderão encontrar a igualdade
Esse manifesto clama pelo fim da desumanização, ridicularização e utilização como bode expiatório de mulheres trans por toda parte. Para os propósitos desse manifesto, mulher trans é definido como qualquer pessoa que a quem se atribuiu um sexo masculino ao nascimento, mas que se identifica como e/ou vive como uma mulher. Nenhum tipo de qualificação deve ser colocado no termo “mulher trans” tendo por base a habilidade da pessoa em “se passar” por mulher, seus níveis hormonais, ou o estado de seus genitais – afinal de contas, é francamente sexista reduzir qualquer mulher (trans ou não) a meras partes de seu corpo, ou exigir que ela alcance um certo ideal ditado pela sociedade quanto a sua aparência.
Talvez nenhuma minoria sexual seja mais difamada ou incompreendida que as mulheres trans. Como um grupo, nós somos patologizadas sistematicamente pelas comunidades médicas e psicológicas, sensacionalizadas e ridicularizadas pela mídia, marginalizada pelas principais organizações lésbicas e gays, descartadas por certos segmentos da comunidade feminista, e, muitas vezes, alvos da violência de homens que por alguma razão sentem que nós, de alguma forma, ameaçamos sua masculinidade e heterossexualidade. Ao invés de recebermos a oportunidade de falarmos por conta própria a respeito dos problemas que afetam nossas vidas, nós mulheres trans somos tratadas mais como temas de pesquisa: outros nos colocam sob o microscópio, dissecam nossas vidas, e nosatribuem motivações e desejos a fim de validar suas próprias teorias e objetivos com relação ao gênero e sexualidade.
Mulheres trans são tão ridicularizadas e desprezadas porque estamos posicionadas de maneira única na intersecção de várias formas de preconceito advindas da visão binária de gênero: transfobia, cissexismo, e misoginia.
Transfobia é o medo irracional de, aversão a, ou discriminação contra pessoas cuja identidade de gênero, aparência, ou comportamentos desviam das normas sociais. Da mesma forma em que os homofóbicos muitas vezes são motivados pelas próprias tendências homossexuais, acreditamos que a transfobia é primariamente e essencialmente uma expressão da insegurança de uma pessoa quanto a sua capacidade de cumprir os ideais culturais de gênero. O fato de que a transfobia é tão feroz em nossa sociedade reflete a realidade de que colocamos uma quantidade extraordinária de pressão sobre os indivíduos para que sujeitem-se às expectativas, restrições, presunções, e privilégios associados ao sexo que lhes foi atribuído ao nascerem.
Apesar de todas as pessoas transgênero passarem por transfobia, transexuais passam por uma forma de preconceito adicional e relacionada (porém distinta): cissexismo, a crença de que o gênero da identidade de um transexual é inferior, ou menos autêntico, que aquele de cissexuais (ou seja, pessoas que não são transexuais e que por toda vida apenas experienciaram seu sexo subconsciente e seu sexo físico como alinhados). A expressão mais comum do cissexismo ocorre quando as pessoas tentam negar a pessoas trans os privilégios básicos associados ao gênero com o qual a pessoa trans se identifica. Exemplos comuns disso incluem o uso proposital de pronomes errados, insistir que a pessoa trans use um banheiro diferente etc. A justificativa para essas recusas é em geral fundamentada na suposição de que o gênero de uma pessoa trans não é autêntico, porque não é correlato a seu gênero de nascimento. Quando se faz essa suposição, o transfóbico tenta criar uma hierarquia artificial – quando insiste que o gênero da pessoa trans é “falso”, eles tentam validar seu próprio gênero como “real” ou “natural”. Esse tipo de raciocínio é extraordinariamente ingênuo, já que ignora uma verdade das mais básicas, a de que todos os dias fazemos suposições quanto ao gênero das pessoas sem jamais conferir suas certidões de nascimento, seus cromossomos, seus genitais, seus sistemas reprodutores, a socialização por que passaram durante a infância, ou seu sexo legal. O gênero “real” não existe – o que há é apenas o gênero com que nos identificamos e o gênero que percebemos em outras pessoas.
Apesar de muitas vezes ocorrerem de maneiras diferentes na prática, o cissexismo, a transfobia e a homofobia todos têm raízes no sexismo oposicional, a crença de que feminino e masculino são cagetorias rígidas e mutuamente exclusivas, cada uma possuindo um conjunto único e não justaposto de atributos, aptidões, abilidades, e desejos. Sexistas oposicionais tentam punir ou descartar aqueles dentre nós que se encontram fora das normas sexuais ou de gênero, porque nossa existência ameaça a ideia de que mulheres e homens são sexos opostos. Isso explica por que bissexuais, lésbicas, gays, transexuais, e outras pessoas transgênero – que podem experimentar seus gêneros e sexualidades de maneiras muito diversas – são tão comumente confundidos entre si ou agrupados na mesma categoria (como queer, por exemplo) pela maioria da sociedade. Nossas inclinações naturais de sermos do outro sexo, ou sentir atração pelo mesmo sexo, desafiam a suposição de que mulheres e homens são categorias mutuamente exclusivas, cada uma delas possuindo um conjunto único de atributos, aptidões, habilidades, e desejos. Quando rompemos com essas normas sexuais e de gênero, nós essencialmente borramos as fronteiras necessárias para se manter a hierarquia centrada no masculino que existe em nossa cultura atualmente.
Além das categorias de gênero rígidas e mutuamente exclusivas estabelecidas pelo sexismo oposicional, outro pré-requisito para que se mantenha a hierarquia de gênero centrada no masculino é fazer cumprir o sexismo tradicional – a crença de que ser homem e a masculinidade são superiores a ser mulher e à feminilidade. O sexismo oposicional e o sexismo tradicional trabalham em conjunto para assegurar que aqueles que são masculinos têm poder sobre aqueles que são femininos, e que apenas aqueles que nasceram homens serão vistos como autenticamente masculinos. Para os propósitos desse manifesto, a palavra misoginia será utilizada para descrever essa tendência de se descartar e ridicularizar ser mulher e a feminilidade em nossa cultura.
Assim como todas as pessoas trans sofrem transfobia e cissexismo em diferentes dimensões (dependendo de quão frequentemente nos declaramos transgênero, quão óbvio isso é, e o quanto “fora do armário” somos), nós também sofremos misoginia em diferentes dimensões. Isso torna-se mais evidente com o fato de que, apesar de haver muitos tipos diferentes de pessoas transgênero, nossa sociedade tende a reservar grande parte de sua atenção e ridículo para as mulheres trans e outras pessoas no espectro masculino-para-feminino. Isso não acontece apenas porque transgredimos as normas de gênero por si só, mas porque nós, necessariamente, valorizamos nosso próprio corpo feminino e nossa feminilidade. Certamente, na maioria dos casos, são nossas expressões de feminilidade e do feminino que tornam-se sensacionalizados, sexualizados, e trivializados por outrem. Apesar das pessoas trans no espectro mulher-para-homem sofrerem discriminação por romper com as normas de gênero (também conhecida como transfobia), suas expressões de masculinidade ou do masculino por si só não são alvos de ridicularização – fazer isso exigiria que se questionasse a própria masculinidade.
Quando uma pessoa é ridicularizada ou descartada não apenas por transgredir as normas de gênero, mas por suas expressões de feminilidade ou de seu corpo feminino, elas se tornam vítimas de uma forma específica de discriminação: transmisoginia. Quando a maioria das piadas feitas às custas de pessoas trans focam-se em “homens que usam vestidos” ou “homens que querem que cortem seus pênis”, isso não é transfobia – trata-se de transmisoginia. Quando a maior parte da violência e agressão sexual que se comete contra pessoas trans é direcionada às mulheres trans, isso não é transfobia – trata-se de transmisoginia. Se não há problema quando mulheres usam roupas “de homem”, mas homens que vestem roupas “de mulher” podem ser diagnosticados com o “distúrbio psicológico” Transvestismo Fetichista, isso não é transfobia – trata-se de transmisoginia. Quando organizações e eventos femininos ou lésbicos abrem suas portas para homens trans mas não para mulheres trans, isso não é transfobia – trata-se de transmisoginia.
Numa hierarquia de gênero centrada no masculino, em que se supõe que homens são melhores que as mulheres e que a masculinidade é superior à feminilidade, não se percebe ameaça maior que a existência de mulheres trans, que, apesar de terem nascido homens e terem herdado os privilégios masculinos, “escolhem” tornar-se mulheres. Quando elevamos nossa feminilidade e nosso feminino, de certa maneira também elevamos dúvidas a respeito da suposta supremacia da masculinidade e do masculino. Para que seja reduzida a ameaça que causamos à hierarquia centrada na masculinidade, nossa cultura (por meio da mídia, primariamente) usa uma gama de táticas no arsenal do sexismo tradicional para fazer pouco caso de nós.
- A mídia nos hiperfeminiza: quando acompanham histórias sobre mulheres trans de fotos nossas quando nos maquiamos, vestimos vestidos, ou calçamos saltos altos, numa tentativa de ressaltar a natureza “frívola” de nossa busca por sermos mulheres, ou ao retratar uma mulher trans como tendo características de personalidade depreciativas associadas ao feminino, como ser fraca, confusa, passiva, ou tímida.
- A mídia nos hipersexualiza: quando cria a impressão de que a maioria das mulheres trans são profissionais do sexo ou farsantes sexuais, e ao frisar que passamos pela transição por razões primariamente sexuais (por exemplo, para atacar homens heterossexuais inocentes ou realizar algum tipo de fantasia sexual bizarra). Essas representações, além de fazerem pouco das razões por que mulheres trans passam pela transição, sugerem implicitamente que as mulheres como um todo não têm valor além de suas habilidades em serem sexualizadas.
- A mídia objetifica nossos corpos: quando sensacionaliza a cirurgia de adequação de sexo e abertamente discute nossas vaginas “artificiais” sem nada da discrição que normalmente se defere a discussões sobre genitais. Mais ainda, aquelas de nós que não passaram por cirurgias são constantemente reduzidas a pedaços de nossos corpos, seja pelos criadores de filmes pornôs com travestis que superenfatizam e exageram nossos pênis, transformando assim as mulheres trans em “travecos” e “mulheres com pau”, ou por outras pessoas que sofreram tanta lavagem cerebral falocentrista que acreditam que a mera presença de um pênis pode superar o feminino de nossas identidades, nossas personalidades, e o resto de nossos corpos.
Como a discriminação antitrans está mergulhada no sexismo tradicional, não basta os ativistas trans apenas desafiarem as normas binárias de gênero (ou seja, o sexismo oposicional) – nós devemos também desafiar a ideia de que a feminilidade é inferior à masculinidade e que o feminino é inferior ao masculino. Em outras palavras, necessariamente, o ativismo trans deve ser em sua essência um movimento feminista.
Alguns podem considerar controversa essa afirmação. Ao longo dos anos, muitas que se descrevem feministas esforçaram-se para desprezar as pessoas trans, e em particular as mulheres trans, muitas vezes utilizando muitas das mesmas táticas (hiperfeminização, hipersexualização, e objetificação de nossos corpos) usadas regularmente pela grande mídia contra nós. Essas pseudofeministas proclamam que “Mulheres podem fazer qualquer coisa de que os homens são capazes” e então ridicularizam as mulheres trans por qualquer aparente tendência masculina que tenham. Elas argumentam que mulheres deveriam ser fortes e não terem medo de falarem o que pensam, e então dizem para as mulheres trans que parecemos homens quando damos nossas opiniões. Elas afirmam que é misógino quando homens criam padrões e expectativas a serem alcançados pelas mulheres, e então nos desprezam por não chegarmos ao nível de sua “mulher padrão”. Essas pseudofeministas consistentemente pregam o feminismo com uma mão, enquanto praticam o sexismo tradicional com a outra.
Já é hora de reclamarmos a palavra “feminismo” dessas pseudofeministas. Afinal de contas, o feminismo é muito similar às ideias de “democracia” ou “cristianismo”. Cada um tem um princípio principal, mas há um número infinito de maneiras de se praticar essa crença. E assim como algumas formas de democracia e cristianismo são corruptas e hipócritas e outras são justas e corretas, nós mulheres trans devemos nos unir a mulheres e aliados de todos os gêneros que apoiam a transexualidade para forjarmos um novo tipo de feminismo, que compreenda que a única maneira de se alcançar a verdadeira igualdade entre os gêneros é abolir tanto o sexismo oposicional como o sexismo tradicional.
Não é mais suficiente que o feminismo lute apenas pelos direitos daquelas que nasceram mulheres. Essa estratégia fez com que os prospectos de muitas mulheres avançassem ao longo dos anos, mas agora tromba com uma barreira que, em parte, foi construída pelas próprias. Apesar do movimento ter trabalhado intensamente para incentivar que as mulheres entrassem em áreas da vida que previamente eram dominadas pelos homens, muitas feministas foram ambivalentes nos melhores dos casos, e resistentes nos piores, à ideia de que homens possam expressar características femininas e adentrem reinos tradicionalmente femininos. E apesar de darmos crédito aos movimentos feministas anteriores por ajudarem a criar uma sociedade em que as pessoas mais sensatas concordam com a afirmação “mulheres são iguais aos homens”, nós lamentamos o fato de que estamos a anos-luz de sermos capazes de afirmar que a maioria das pessoas acreditam que a feminilidade está no mesmo patamar que a masculinidade.
Ao invés de tentarmos empoderar aquelas que nascem mulheres incentivando-as a afastarem-se da feminilidade, nós deveríamos aprender a empoderar a própria feminilidade. Devemos deixar de descartá-la como “artificial” ou como uma “performance”, e passar a reconhecer que certos aspectos da feminilidade (assim como da masculinidade) transcendem tanto a socialização como o sexo biológico – do contrário, não haveria garotos femininos e garotas masculinas durante a infância. Devemos desafiar todos aqueles que pressupõem que a vulnerabilidade feminina é um sinal de fraqueza. Pois quando nos abrimos, seja comunicando honestamente nossos pensamentos e sentimentos ou expressando nossas emoções, esse é um ato audaz, que requer mais coragem e força interior que a fachada de silêncio e estoicismo do macho-alfa.
Devemos desafiar todos aqueles que insistem que mulheres que agem ou se vestem de forma feminina necessariamente estão adotanto uma postura submissa ou passiva. Para muitas de nós, vestir-se ou agir de maneira feminina é algo que fazemos para nós mesmas, não para os outros. É nossa maneira de reclamar nossos corpos e destemidamente expressar nossas personalidades e sexualidades. Não somos nós, mas sim aqueles que tolamente supõem que nosso estilo feminino é um sinal de que somos subjugadas sexualmente aos homens, os culpados de tentar reduzir nossos corpos ao status de meros brinquedos.
Num mundo em que se supõe que a masculinidade representa a força e o poder, aquelas que são caminhoneiras e masculinas são capazes de contemplar suas identidades dentro da segurança relativa dessas conotações. Em contraste, aquelas dentre nós que são femininas somos forçadas a nos definirmos em nossos próprios termos e desenvolvermos nosso próprio senso de autoestima. São necessários coragem, determinação, e destemor para aquelas de nós que são femininas consigam elevar a nós mesmas acima dos significados inferiorizadores que são constantemente projetados sobre nós. Se é necessário algum indício de que a feminilidade pode ser mais feroz e perigosa que a masculinidade, tudo que se precisa fazer é pedir que um homem comum segure sua bolsa ou um buquê de flores por um minuto, e observar a que distância ele mantêm esses objetos de seu corpo. Ou diga a ele que você gostaria de passar seu batom nele e observe a velocidade com que ele se afasta. Num mundo em que a masculinidade é respeitada e a feminilidade é regularmente descartada, é preciso muita força e confiança para qualquer pessoa elevar a própria identidade feminina.
Mas não basta empoderar o feminino e a feminilidade. Devemos também parar de fingir que há diferenças essenciais entre mulheres e homens. Isso começa reconhecendo-se que há exceções para todas as regras e estereótipos de gênero, e que essa simples afirmação refuta todas as teorias de gênero que afirmam que homem e mulher são categorias mutuamente exclusivas. Devemos nos afastar da ilusão de que os sexos masculino e feminino são “opostos”, porque quando acreditamos nesse mito, estabelecemos um precedente perigoso. Pois, se os homens são grandes, então mulheres têm que ser pequenas; e se homens são fortes, então mulheres têm que ser fracas. E se tornar-se masculina é fazer-se rígida, então tornar-se feminina significa permitir-se ser maleável; e se ser homem significa tomar controle da situação, então ser mulher significa viver para cumprir as expectativas alheias. Quando aceitamos a ideia de que o masculino e o feminino são “opostos”, torna-se impossível empoderar as mulheres sem ridicularizar os homens ou puxar o tapete de nós mesmas.
Apenas quando nos afastamos da ideia de que há sexos “opostos”, e abandonamos os valores derivados da cultura que são atribuídos às expressões da feminilidade e masculinidade, podemos finalmente nos aproximar da igualdade entre os gêneros. Ao se desafiar simultaneamente o sexismo oposicional e o sexismo tradicional, podemos fazer com que o mundo se torne seguro para aqueles de nós que são queer, aqueles que são femininos, e aqueles que são mulheres, simultaneamente empoderando pessoas de todos os gêneros e todas as sexualidades.
Marcio Caparica
Acesse no site de origem: Julia Serano aborda múltiplas discriminações sofridas por mulheres trans (Lado Bi, 24/08/2015)