Em uma tarde em fevereiro de 2016, o corpo da trans conhecida somente como Michele foi encontrado em um terreno abandonado no Jardim Ângela, bairro na zona Sul de São Paulo. Ela era funcionária de uma ONG para tratamento de dependentes químicos e morava com um companheiro há cerca de dez anos, conta o Ministério Público.
(UOL, 21/10/2017 – acesse aqui)
A perícia revelou que Michele foi estrangulada e morta a facadas. O MP denunciou o próprio companheiro dela como o suspeito do crime. É a primeira denúncia de feminicídio contra transgêneros registrada em São Paulo. A lei funciona como um agravante para homicídios dolosos (quando há intenção para matar) e torna um homicídio simples, cometido por ódio contra mulheres, em crime hediondo. Os promotores do caso afirmam que a ação pode ser o primeiro passo para se estender o entendimento a novos casos.
Lei pode ser compreendida para mulheres trans
O promotor do caso, Flávio Lorza, relata que Michele viveu e foi tratada como mulher desde a adolescência. Era cozinheira na ONG onde trabalhava em São Paulo e tinha a própria casa. O companheiro, mais tarde, se mudou para lá e a relação do casal passou a ter um histórico de agressividade, diz o promotor. Segundo a lei de 2015, um homicídio doloso pode ser enquadrado como feminicídio caso tenha sido cometido como consequência de violência doméstica, familiar, preconceito ou desprezo contra mulheres. Enquanto uma pena por homicídio simples varia de 6 a 20 anos, o agravante feminicida vai de 12 a 30 anos de reclusão.
Para Flávio, mesmo que a vítima seja transexual, a morte pode ser enquadrada na lei. “Nós analisamos toda a situação de violência, falamos com quem a conhecia e a reconhecemos, mesmo em um momento tão duro que, socialmente, sua vida era do gênero feminino”, diz. E acrescenta: “a questão de gênero faz parte de um momento de reconhecermos que a pessoa não está condicionada ao sexo biológico. Com isso, ajudamos a incluir na sociedade uma grande quantidade de pessoas que vivem nesta situação”.
Interpretação da lei pode se estender a próximos casos
Uma das críticas de grupos que lutam por direitos LGBT é que o texto da lei do feminícidio não especificou uma legislação para crimes de ódio contra pessoas trans. A promotora Valéria Scarance, líder do laboratório de discussão de gênero e violência doméstica do MP paulista, diz que há uma capacitação nacional do órgão para que a lei supra a lacuna. Estamos desenvolvendo a lei do feminicídio para ampliar o conceito de mulher e fazer a compreensão jurídica ser diferente da compreensão biológica, abrangendo assim trans e travestis”, explica. Grupos e pesquisas internacionais colocam o Brasil como um dos países que mais mata pessoas transexuais e travestis no mundo. Um monitoramento do Grupo Gay da Bahia (GGB) mostrou que 347 trans e travestis foram assassinadas somente em 2016 no Brasil.
A morte de Michele
De acordo com o boletim de ocorrência, uma testemunha relatou que Michele estava desaparecida há uma semana quando seu corpo, já em decomposição, foi encontrado por policiais militares. Além de feminicídio, o ex-companheiro de Michele responde por ocultação de cadáver, o que pode estender a pena por mais três anos. A defensoria pública, que realiza a defesa do réu, não se pronuncia sobre casos em julgamento. O julgamento aguarda a manifestação da defesa.
Por Marcos Candido, do UOL, em São Paulo