(BBC Brasil, 03/05/2016) Em maio do ano passado, Lily (nome falso), de 7 anos, foi para a escola usando uma saia e foi chamada por um nome de menina pela primeira vez. Ela nasceu menino, mas aquele “dia da saia” marcou sua transição para a vida como menina.
Aparentemente, tanto ela quanto seus colegas de classe lidaram bem com a mudança. “Quando fui para a escola aquele dia, todo mundo disse ‘Oi, Lily, você fica bem de saia’. E eu dizia ‘ahh, obrigada’.”
“Foi meio natural, mas mais constrangedor porque a meia-calça fazia minhas coxas coçarem muito. Depois parou de ficar constrangedor.”
Lily – que não é seu nome verdadeiro – havia começado a usar roupas femininas havia pouco tempo, em janeiro de 2015. “É meio diferente, mas na maior parte do tempo é igual, porque eu continuo como eu fazia quando era menino”, diz ela.
Transgênero é um termo usado para descrever uma pessoa que não se identifica com o gênero com o qual nasceu – elas podem querer ser vistas como pertencendo a um gênero diferente ou mesmo como de nenhum gênero.
No Reino Unido, há apenas um centro especializado em problemas de gênero para crianças e adolescente, o Tavistock and Portman NHS Trust.
No último ano, 167 crianças com 10 anos ou menos foram encaminhadas para este centro, quase o dobro do ano anterior. O dado inclui três crianças de três anos.
Os psicólogos das clínicas do centro avaliam que o aumento se deve ao fato de a sociedade estar se tornando mais acolhedora.
Pesadelos
No ano passado, a reportagem da BBC conversou com Lily e com outra menina, Jessica – também não é seu nome verdadeiro -, que tem nove anos. Neste ano, a BBC voltou a acompanhá-las para saber como estava sendo a transição.
À época, Jessica estava indo para a escola como menina havia dois meses.
Ela parece uma típica menininha quando fala com animação sobre ter as orelhas furadas. “Eu queria parecer uma menina, queria fazer isso imediatamente”, diz.
Mas seus pais dizem que sua vida está começando a ficar mais difícil.
“Foi um ano muito bom, a escola está sendo ótimo e agora ela vai conseguir mudar seu nome oficialmente para Jessica, já que ela tem autorização do pai”, diz a mãe, Ella.
“Mas ela tem tido pesadelos de que vai morrer como um homem, que ela vai ter barba. Ela está começando a pedir bloqueadores de hormônios.”
“O problema com crianças é que elas acham que tudo vai acontecer imediatamente, que ela vai acordar e vai ser isso, vai ter acontecido”, diz o padrasto da menina.
Eles acham que os hormônios podem ser responsáveis pelo que está acontecendo e dizem que estavam com esperança de ter outro “ano simples” antes da chegada da puberdade de Jessica.
Jessica diz que é difícil quando as pessoas esquecem de tratá-la como uma menina. “Fico um pouco chateada e zangada e eu não gosto, e não consigo controlar meu humor muito bem”, diz.
Acompanhamento médico
Ela diz estar ansiosa pelo dia em que seu gênero não será mais uma questão. “Eu não vou acabar sendo uma menino para sempre, porque eu vou ser uma menina, eu sei disso. Mas às vezes eu não fico tão confiante”, diz.
No Reino Unido, jovens transgêneros podem receber atendimento no sistema público de saúde, o NHS, mas nesta idade este apoio vem como atendimento psicológico. Intervenções médicas só são consideradas quando eles se aproximam da puberdade, quando podem receber bloqueadores de hormônios.
Estes bloqueadores atrasam as mudanças físicas associadas à puberdade, dando mais tempo ao jovem para se decidir se quer viver como homem ou mulher. Aos 16 anos, um paciente pode tomar hormônios de transição de gênero. A cirurgia só pode ser feita a partir dos 18 anos.
Jay Stewart, diretor do Gendered Intelligence – organização que dá apoio a jovens transgêneros – dizem que é comum que a vida seja vista como mais complicada na puberdade. Ele diz que a combinação de apoio social, psicológico e fisiológico pode ajudar.
“Essas dificuldade não afetam todos os trans, mas há uma narrativa presente de jovens de que o corpo deles está se desenvolvendo de uma forma que eles não querem. Os serviços, como as escolas, devem saber que essas mudanças visíveis que a puberdade traz podem ser estressantes porque sabemos que elas terão impacto na forma como ela é tratada pela sociedade.”
Os pais de Lily dizem que ela parece feliz e ainda não pensa com muita profundidade sobre o futuro. Mas foi um ano importante para toda a família.
Lily, que estava pedindo para viver como menina havia anos, tomou as rédeas do ritmo da mudança ao dizer a sua escola que ela queria ser conhecida como menina. “Ela que foi em frente com isso”, diz a mãe, Jen.
A família teve inúmeras reuniões com a escola para planejar a transição. Quando Lily usou uma saia pela primeira vez, a diretora fez uma reunião com os alunos sobre aceitar diferenças.
Para Jen, foi emocionante. “Era um dia muito importante, um dia oficial em que aquele menino deixou de existir e agora tínhamos uma menina.”
O irmão de Lily, de 9 anos, notou pela primeira vez que ela era diferente quando quis comprar um vestido rosa e brincar com bonecas e fadas. Ele diz que e relação dos dois “é normal”.
Os dois estudam na mesma escola – ela diz que “todo mundo está ok” com isso lá.
Transição
“Eles [os outros alunos] me perguntavam, antes das reuniões, ‘por que seu irmão gosta de coisas de menina’. E eu dizia ‘porque ela é assim’. Estou muito orgulhoso pelo que ela passou, ela está muito bem no momento e ninguém está fazendo bullying com ela nem nada, está tudo bem”, diz.
A vida doméstica de Jessica também passou por uma grande mudança.
Seus pais biológicos se separaram e sua mãe está em um relacionamento com outra mulher, Alex, desde que ela era bebê. Em fevereiro de 2015, Alex também decidiu fazer a transição e começou a viver como homem.
“Eu não queria fazer nada sobre isso até sentir que Jessica e a família estavam mais estáveis. Achei que agora era uma hora para eu ser honesta comigo mesmo, acho”, diz ele.
“Eu me sentia da mesma forma que Jessica, mas não entendia ou sabia até pesquisar sobre o que estava acontecendo com Jessica. Então, na mesma hora eu me entendi.”
Mas o casal não acredita que a transição de Alex possa ter influenciado Jessica.
“Se fosse o contrário e Alex tivesse feito a mudança antes, e depois Jessica, eu acharia que houve influência”, diz Ella.
Algumas pessoas podem achar que isso é só uma fase, que vai passar. A mãe de Lily, Jen, diz que é difícil para as pessoas entenderem quando não passaram por esta situação.
“Isso é uma condição médica, não é uma escolha, eles nasceram assim. Pessoas que estão fazendo a transição já adultos dizem que sabiam desde cedo. Só estavam tentando dar apoio a nossa filha para que ela tenha mais tempo de vida sendo quem ela quer ser”, diz.
Todos os nomes foram alterados para esta reportagem. As crianças, as famílias e as escolas concordaram com as entrevistas.
Sarah Bell
Acesse no site de origem: ‘Não quero ter barba’: menina transgênero de 9 anos comenta temores pós-transição (BBC Brasil, 03/05/2016)