(O Globo, 25/11/2014) Por determinação do Ministério Público, a Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro (Seeduc-RJ) recolheu as cartilhas católicas “Chaves para a bioética” distribuídas a professores da rede estadual durante o X Fórum de Ensino Religioso, realizado no fim de março. O material, que, segundo o MP, contém conteúdo homofóbico e machista, é o mesmo entregue a milhares de participantes da Jornada Mundial da Juventude de 2013, realizada no Rio. Na ocasião, foram impressos cerca de 2 milhões de exemplares do guia em quatro idiomas – 900 mil apenas em português -, com produção da fundação católica Jérôme Lejeune e da Comissão Nacional da Pastoral Familiar da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). A denúncia foi feita pelo grupo de pesquisa da diversidade Ilè Obà Òyó, do programa de pós-graduação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
Os pontos mais polêmicos da cartilha estão num anexo escrito sob preceitos difundidos pelo Vaticano, que ataca a chamada “teoria de gênero”. Para a Igreja, a ideia de que o gênero deve ser autodeterminado e tem ligação com a orientação sexual (heterossexual, homossexual, bissexual, transgênero etc.) é condenável. De acordo com o material, “a teoria de gênero subestima a realidade biológica do ser humano. Reducionista, supervaloriza a construção sociocultural da identidade sexual, opondo-a à natureza”. Algumas ilustrações também ironizam a orientação sexual, e “reflexões éticas” sugerem que recusar a adoção aos homossexuais não representa homofobia e que “ninguém pode decidir se transformar em homem ou em mulher”.
Uma das recomendações da 2ª Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva de Proteção à Educação da Capital — que considerou “o conteúdo discriminatório (homofóbico e machista)”, além de vinculado a religiões — determinou a realização de campanhas de esclarecimento em toda a rede estadual sobre a necessidade de respeito a todos modelos familiares e orientações sexuais. A ideia do Ministério Público é “neutralizar qualquer conteúdo eminentemente religioso nas cartilhas (em especial a fim de repudiar o conteúdo descrito como ‘Teoria do gênero’)”.
PARA PROFESSORAS, DISTRIBUIÇÃO FERE LAICIDADE
Para a professora da Uerj Stela Caputo, coordenadora do grupo de pesquisa Ilè Obà Òyó, a decisão é inédita e histórica. Ela atacou a distribuição de material de cunho religioso para professores da rede pública, algo que fere a laicidade do Estado:
– O manual é conservador, machista, homofóbico e transfóbico. Condena, entre outras coisas, a adoção de crianças por casais homossexuais e debocha perversamente das diferentes orientações sexuais humanas, ridicularizando a teoria de gênero. O mais importante é continuar a luta por uma educação impregnada pelos direitos humanos no cotidiano das escolas.
Em cumprimento às determinações do MP, a Seeduc-RJ informou no inquérito que providenciou o recolhimento da cartilha junto aos cerca de 100 participantes do X Fórum de Ensino Religioso e que os exemplares da “Chaves para a bioética” não foram distribuídos em diretorias regionais e unidades escolares, mas que faziam parte de um kit oferecido no fórum.
Além de se comprometer a não realizar mais fóruns de ensino religioso, desenvolvendo somente projetos voltados aos direitos humanos, a secretaria informou que presta assessoria e orienta as suas unidades escolares a promover a discussão, a reflexão e a troca de informações para prevenir e evitar o sexismo, a homofobia e a violência, “promovendo o respeito às diferenças”. Como exemplos, citou a realização do seminário de diversidade “Direitos humanos: a escola e as mudanças sociais”, além de uma jornada com o tema “Diálogos sobre a diversidade”, para professores, alunos, gestores e outros profissionais da educação.
Ao GLOBO, a assessoria de imprensa da secretaria ratificou os esclarecimentos prestados ao MP-RJ e informou que a servidora responsável pela distribuição do material durante o fórum foi afastada do cargo de direção do setor religioso.
Stela Caputo contesta as informações e diz que, ao distribuir os manuais no fórum, a orientação era de que os interessados fossem até uma igreja em Realengo e recolhessem as cartilhas para suas escolas. Segundo ela, pelo menos uma professora de ensino religioso esteve no local para pegar o material.
– Havia cerca de 100 professores presentes no fórum. Ou seja, são 100 professores levando o manual para suas escolas – afirma Stela. – Fora os que estiveram na igreja para recolher. Então, é óbvio que o manual chegou às escolas, seja através dos professores presentes, seja através dos que estiveram na igreja por orientação do próprio fórum.
Quanto ao fato de ter havido orientação para se buscar a referida cartilha em uma igreja, a Secretaria de Educação informou que não deu tal orientação e a desconhece. Segundo nota enviada pela sua assessoria de comunicação, “houve, ainda, orientação às direções para que recolhessem caso algum docente estivesse utilizando. Não houve, porém, relatos novos de qualquer confusão nem mesmo reclamações”.
O inquérito foi arquivado pelo MP-RJ devido à compreensão da promotora responsável pelo caso de que o Estado do Rio cumpriu as determinações, com a ressalva de que a Secretaria de Promotoria de Justiça realize consultas anuais junto à Secretaria de Educação a fim de verificar sobre a possível realização de Fórum de Ensino Religioso naquele ano.
BISPO CHAMOU GUIA DE ‘VERDADEIRA FAÇANHA’
Além do anexo sobre a teoria de gênero, a cartilha de bioética para jovens é dividida em oito capítulos: história do pequeno ser humano; aborto; diagnóstico pré-natal; assistência médica à procriação; pesquisa sobre o embrião; eutanásia; e doação de órgãos.
Em cada capítulo, há as seguintes seções: “o que é?”, “os metódos”, “perguntas”, “reflexões éticas”, “testemunhos” e “o que diz a Igreja”. Na época da publicação, o presidente da Comissão Episcopal Pastoral para a Vida e a família, da CNBB, dom João Carlos Petrini, disse ter considerado o manual uma “verdadeira façanha”.
Segundo o bispo, a cartilha “proporciona uma formação de base. Quando a vida começa, quando termina; trata também da fecundação assistida, se não é melhor uma criança nascer do amor entre um homem e uma mulher. Em suma, são dadas razões científicas, por parte de médicos, biólogos, para dialogar com o mundo sobre essas questões”.
Lauro Neto
Acesse o PDF: Por ordem do MP, Governo do Rio recolhe cartilhas ‘homofóbicas’ e suspende fóruns religiosos (O Globo, 25/11/2014)