(O Globo, 10/01/2015) Não é preciso ser uma feminista perfeita para defender a igualdade de gênero. Com esse lema, a americana Roxane Gay mostra um outro ângulo no debate sobre o direito das mulheres. Em vez de cravar respostas e impor padrões de comportamento, a romancista e ensaísta expõe suas próprias falhas e contradições, sustentando que há muitas formas de viver o feminismo. Em seu livro “Bad feminist” (Má feminista, em tradução literal), uma reunião de textos publicados originalmente em jornais como “The Guardian” e sites como “Slate”, a autora de origem haitiana promove um ativismo mais flexível. Segundo ela, o “pedestal feminista” teria “roubado o feminismo das feministas” com seus altos padrões, exigências e restrições. É possível, por exemplo, gostar de hip hop mesmo que suas letras sejam misóginas, ou apreciar revistas de moda apesar de elas perpetuarem uma ideia prejudicial das mulheres. Em um ensaio comovente, ela mostra como os livros da série infantojuvenil “Sweet valley high”, protótipo da juventude branca americana, ajudou a moldar sua formação como mulher negra da classe operária.
Lançada em agosto passado nos Estados Unidos, a publicação fez sucesso ao misturar memorialismo com crítica cultural. A revista “Time” chegou a anunciar: 2014 é “o ano Roxane Gay”. O estilo da autora é incisivo e caloroso. O leitor tem sempre a impressão de estar conversando com uma velha amiga, alternando passagens de raiva, emoção e humor.
“Eu abraço o rótulo de bad feminist porque sou humana”, explica ela em um dos ensaios do livro. “Sou bagunçada. Não estou tentando servir de exemplo para ninguém. Não estou tentando ser perfeita. Não estou tentando dizer que tenho todas as respostas. Não estou tentando dizer que estou certa. Estou apenas tentando — tentando apoiar aquilo em que acredito, tentando fazer algo bom nesse mundo, tentando fazer algum barulho com minha escrita sem deixar de ser eu mesma”.
Como chegou ao conceito de bad feminism?
Comecei a me autoproclamar bad feminist com certa ironia, porque era engraçado. Mas quanto mais eu usava o termo, mais eu me dava conta que também era uma maneira útil de pensar o meu feminismo. Sou profundamente empenhada em alcançar a igualdade para as mulheres e em pensar de forma interseccional, mas também sou humana e tenho defeitos. Precisava criar um espaço dentro do feminismo para que eu pudesse ser eu mesma.
Por que devemos questionar a necessidade de perfeição no feminismo?
Historicamente, tem-se a impressão de que o feminismo aprisionou as mulheres a padrões injustos, onde era preciso se prender a um conjunto muito específico de crenças e agir em um conjunto muito específico de maneiras para ser uma ativista adequada. É algo irrealista, não inclusivo e insustentável. Precisamos desafiar essa ideia de perfeição para que mais pessoas aprendam o que o feminismo realmente é e, com sorte, desejem que ele faça parte de suas vidas.
Seus ensaios são muito focados na cultura pop, e não temem analisar ou elogiar produtos que fazem, como você mesmo reconhece, uma má representação das mulheres. Qual o papel da cultura pop na sua escrita? Ela ajuda a humanizar aquilo que é apenas teórico?
Sem dúvida. Não importa se eu estou falando sobre cultura pop ou sobre cultura erudita, ainda assim estarei falando sobre cultura em um espectro, e de como as pessoas se expressam de forma criativa. Ao falar sobre cultura pop, estou me aproximando de algo acessível através de uma lente feminista. Espero assim oferecer ferramentas mais fortes para que se pense sobre a nossa cultura e o alcance e as consequências dessa cultura.
Historicamente, o feminismo tem negligenciado outras minorias, incluindo mulheres afro-americanas?
Com certeza. Por muito tempo, o feminismo se preocupou principalmente com a mulher branca de classe média. O movimento negligenciou mulheres de cor, mulheres queers, operárias, transgêneras, como se primeiro fosse preciso lidar com os problemas das mulheres de classe média brancas e depois com o resto. Isso está mudando lentamente, e chegou a hora de tentar trazer mais mudanças em um ritmo mais acelerado, porque a necessidade é grande lá fora.
O feminismo entrou na agenda de celebridades. Cantoras como Beyoncé estariam usando o movimento como uma simples estratégia de marketing? É possível que as ideias feministas acabem diluídas ou edulcoradas por esse fenômeno?
Não concordo. Quando celebridades defendem o feminismo e seus ideais, elas estão ampliando o alcance do feminismo. Elas podem não oferecer tudo aquilo que existe no feminismo, mas ainda assim podem ser uma bastante necessária porta de entrada.
E qual o papel da internet na popularização do movimento? Os blogs teriam ajudado a “dessacralizar” o feminismo?
A internet tornou a inclusão dentro do movimento feminista mais possível. Há muitos fóruns, muitas maneiras de usar nossas vozes sobre questões importantes para nós e isso ajuda o movimento a crescer de forma empolgante.
Você foi vítima de um estupro na adolescência e já declarou que o trauma moldou a sua escrita. Que influência ele teve na sua formação feminista?
O que eu vivi fez com que falar sobre violência sexual e as repercussões da cultura do estupro tivesse uma importância crítica para o meu feminismo. Gostaria de pensar que isso também me ajudou a ser mais compreensiva com as mulheres, independentemente de suas experiências terem sido semelhantes às minhas ou não.
Acesse o PDF: Roxane Gay e a defesa do feminismo imperfeito (O Globo, 10/01/2015)