O estudo realizado na Faculdade de Saúde Pública da USP analisou dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação no período de 2009 a 2019
A violência física doméstica contra crianças e adolescentes é um grave problema de saúde pública, que traz inúmeros agravos às vítimas. A Organização Mundial da Saúde estima que 300 milhões de crianças entre 2 e 4 anos sofrem regularmente violência física no mundo e 40.150 crianças e adolescentes de 0 a 17 anos morrem por ano vítimas de violência.
A alta incidência desse tipo de ocorrência no Brasil aponta a necessidade urgente de elaboração de políticas públicas para enfrentar e prevenir o problema. Em sua dissertação de mestrado O corpo da criança como receptáculo da violência física: análise dos dados epidemiológicos do Viva/Sinan, Aline Conegundes Riba mostra que a maior taxa de violência física é sofrida por meninas de 10 a 14 anos de idade (248 por 100 mil habitantes). Se considerado apenas o sexo masculino, a faixa etária com maior taxa de violência física é de 0 a 4 a anos (232 por 100 mil habitantes).
O estudo descritivo foi realizado a partir de dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan-NET) do Ministério da Saúde, e sistema TABWIN, desenvolvido pelo Datasus, com a orientação da professora Fabíola Zioni, do Departamento de Saúde, Ciclos de Vida e Sociedade da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP. Os dados analisados correspondem ao período de 2009 a 2019.
No total de todas as regiões do Brasil, a faixa etária que apresenta as maiores taxas de óbito por violência física doméstica é de 0 a 4 anos, para meninas e meninos, mostra o estudo. “É nessa mesma faixa etária que ocorrem, com maior frequência, os óbitos em decorrência de violência”, afirma Aline. E são os meninos os que os que mais sofrem violência fatal nesta faixa etária: 63,31%.
“Pai e mãe são os agressores mais frequentes e os que mais cometem violência fatal. O padrasto e a madrasta são quem mais reincidem na violência. O meio de agressão mais frequente foi força corporal/espancamento e, na maior parte das vezes, a violência aconteceu dentro de casa”, explica a psicóloga e agora mestre em Saúde Pública.
O texto ressalta que, na literatura, há divergências quanto à prevalência da violência considerando a variável raça/cor. No entanto, os dados do Sinan analisados no recorte deste estudo mostram que a raça com maior taxa de óbito por violência física doméstica é a indígena para meninos e meninas (41 e 16 por 1 milhão de pessoas, respectivamente).
A população indígena possui as maiores taxas de violência em todas as regiões do Brasil, sendo que a maior observada é na região Sudeste (844 por 100 mil habitantes). Entre os meninos, a taxa de violência na raça/cor indígena é de 203 por 100 mil habitantes e na raça/cor preta é de 197 por 100 mil habitantes.
Meninas indígenas apresentaram altíssima taxa de violência, 536 por 100 mil habitantes. A população preta do sexo feminino teve a segunda maior taxa, 261 por 100 mil habitantes.
Segundo o estudo, pai e mãe são os agressores mais frequentes e os que mais cometem violência fatal. O padrasto e a madrasta são quem mais reincidem na violência física. O meio de agressão mais frequente foi força corporal/espancamento e, na maior parte das vezes, a violência aconteceu dentro de casa.
Questão cultural
A violência e a punição usadas como forma de educação são um hábito cultural desde a chegada dos colonizadores e jesuítas. Com exceção das crianças indígenas que habitavam o Brasil antes da chegada dos portugueses, as demais sofreram punições corporais como forma de educação, segundo o estudo.
A autora destaca ainda que os castigos físicos como forma de controle do comportamento da criança tiveram início na proposta de educação católica que se estabeleceu no Brasil. Os índios tinham costumes inaceitáveis dentro da lógica cristã e, assim, “seus comportamentos precisavam ser moldados”. Crianças e jovens nem sempre aceitavam passivamente os ensinamentos cristãos. Assim, intervenções punitivas e castigos corporais tinham o objetivo de gerar temor e sujeição, sendo muito utilizados na tentativa de garantir a conversão religiosa. Nas aldeias administradas pelos jesuítas existiam troncos e pelourinhos, conforme o texto.
O estudo conclui que os meninos são mais suscetíveis à violência física doméstica na infância e, as meninas, na adolescência. Os meninos são mais acometidos por violência doméstica entre os 0 e 4 anos de idade, sendo que é nesta faixa etária que ocorrem, com maior frequência, os óbitos em decorrência de violência física. As raças mais acometidas pela violência são a indígena e a parda. A população indígena, em especial, as meninas, apresenta uma altíssima taxa de óbito em decorrência da violência.
Outra conclusão do estudo é relacionada ao encaminhamento dos casos. O estudo identificou que a articulação com a rede intersetorial pouco acontece e a comunicação ao Conselho Tutelar não é efetivada integralmente, conforme preconizado no ECA, “vulnerabilizando a criança e o adolescente em situação de violência”, reforça a pesquisadora.