Na política, nas universidades, nas redes sociais e nas igrejas, março escancarou o machismo e a misoginia que persistem em todas as esferas do poder.
Enquanto políticos e empresas inundavam as redes com mensagens vazias sobre “força feminina”, março foi palco de incontáveis demonstrações de machismo – cultura enraizada que subjuga as mulheres – e de misoginia – expressão deliberada de ódio – que ainda permeiam todas as esferas do poder.
Dos tribunais às universidades, das igrejas ao Congresso, a violência contra as mulheres – seja pela espetacularização, banalização ou naturalização – revelou-se de forma escancarada e, muitas vezes, sem consequências.
O mês teve início com a repercussão da entrevista do ex-ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, ao UOL, que adotou o discurso de culpabilização das vítimas. Aliados do campo progressista também demonstraram que a descrença nas vítimas ultrapassa fronteiras políticas.
Quando uma das vítimas é Anielle Franco, ministra da Igualdade Racial, a situação se torna ainda mais grave, especialmente ao observarmos a luta antirracista sendo acionada para proteger um homem negro, enquanto a palavra de uma mulher negra é deslegitimada.
Da mesma forma, o movimento internacional Me Too, que acolhe vítimas de violência sexual, foi alvo de campanhas para descredibilizar seu trabalho.
Sistematicamente questionada, não por acaso a palavra da vítima de violência sexual tem valor probatório, dada a dificuldade em comprovar o crime. O fato de que somente 10% a 15% dos casos de violência sexual são denunciados diz muito sobre o calvário dessas vítimas que ousaram não silenciar. Não basta afirmar que o machismo é estrutural, é preciso identificá-lo e repudiá-lo nas dinâmicas de poder em que se manifesta.
A mesma contradição apareceu quando Lula, durante a posse de Gleisi Hoffmann como ministra de Relações Institucionais, em 10 de março, reduziu uma das principais lideranças políticas do país a uma “mulher bonita” para “negociar com o Congresso” – como se a entregasse aos “mafiosos do patriarcado”.
É sintomático que tenhamos dificuldade até de imaginar a situação inversa: um presidente elogiando publicamente as qualidades físicas de um ministro homem como trunfo político. A naturalidade com que aceitamos esse tipo de comentário quando dirigido a mulheres mostra o quanto a cultura machista ainda dita as regras – inclusive entre quem deveria combatê-la.
Se o machismo foi plataforma de governo no bolsonarismo, o atual presidente se elegeu com um projeto político oposto – vale lembrar disso, porque esquecer pode ter um custo alto. O apoio ao governo também precisa ser coerente com o que se defende sob pena de esvaziamento da agenda política.
O mês das mulheres foi marcado ainda pelo chocante feminicídio de Vitória, uma jovem de 17 anos que desapareceu em 28 de fevereiro e teve seu corpo encontrado em 5 de março. A crueldade do ato não bastou para evitar que a vítima fosse julgada e condenada postumamente por ousar existir como mulher. Nas redes sociais, questionaram por que ela “voltava sozinha à noite”, com quem se relacionava e ainda fizeram análises cruéis sobre suas fotos. No programa “Encontro”, a apresentadora Patrícia Poeta se referiu ao caso como “crime passional” e, para piorar, revelou ao vivo a identidade do suspeito ao pai da vítima.
Os números são um retrato dessa guerra não declarada. Mais de 21 milhões de brasileiras, ou 37,5% das entrevistadas na pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, sofreram algum tipo de violência nos últimos 12 meses, o maior índice já registrado. Também neste mês, a ONU alertou que em 2024 um em cada quatro países retrocedeu nos direitos das mulheres – e o Brasil parece empenhado em liderar essa marcha à ré.
Um março em que não faltaram exemplares espetáculos de misoginia. Em culto evangélico, a cantora e agora pastora, Baby do Brasil, pediu que vítimas de estupro “perdoassem” seus agressores. O Ministério Público de São Paulo arquivou a denúncia sob alegação de liberdade religiosa.
Já os limites da perversidade enfrentada por mulheres em cargos políticos foram atualizados quando o senador Plínio Valério (PSDB-AM) disse ter vontade de “enforcar” Marina Silva e reafirmou a ameaça sem qualquer arrependimento.
Outro show de misoginia foi protagonizado por estudantes de Medicina da Universidade Santa Marcelina (SP) que posaram com um banner glorificando violência sexual: “entra porra, escorre sangue”.
Já o vice-prefeito de Lages (SC), Jair Junior (Podemos), mostrou que não tem cargo público que barre a violência doméstica. Ele foi preso e solto horas depois por agredir a ex-namorada e mantê-la em cárcere privado.
Mais um exemplo da dupla moral de uma política que usa o discurso de proteção à família para perpetuar o controle violento sobre as mulheres.
E como citar todos os casos de violência política de gênero e raça que ocorrem diariamente no Brasil? Durante sessão na Câmara de Vereadores de Belo Horizonte (MG), o vereador Vile (PL) bateu na mesa e gritou com a vereadora Iza Lourença (Psol), durante a votação de uma moção de apoio à anistia aos golpistas de 8 de janeiro.
Em Joinville, a vereadora Vanessa da Rosa (PT) denunciou ataques constantes de Wilian Tonezi (PL) contra parlamentares mulheres, resultando na aceitação de uma denúncia de quebra de decoro parlamentar. O vereador chegou a descrever, durante Sessão Ordinária, o movimento feminista como “assassino” e o mais “sanguinário” que já existiu no planeta.
Como bem analisa a antropóloga argentina Rita Segato, no livro La guerra contra las mujeres (2016) — A guerra contra as mulheres, em tradução livre — vivemos a “mafialização da política”, em que o mandato da masculinidade se assemelha a uma estrutura mafiosa.
A violência, nesse contexto, é usada como ferramenta para expressar, exibir e consolidar o poder de forma truculenta, diante dos olhos do público.