(Bolsa de Mulher, 22/06/2015) A divulgação dos casos de abuso sofridos pelas repórteres do Bolsa De Mulher abriu portas por aqui para discutirmos mais profundamente um problema real e tão presente no cotidiano das mulheres. Ouvimos diversos relatos, levantamos discussões importantes e buscamos soluções para ajudar as vítimas que tiveram suas vidas marcadas por esses crimes.
Entre as muitas leitoras que enviaram suas histórias para a redação, Valentina (nome fictício) contou detalhes do estupro que sofreu em uma festa de trabalho. E, assim como ela, outras mulheres decidiram falar sobre o tema tão delicado. A seguir, reunimos alguns dos depoimentos mais comoventes e explicamos o que é possível fazer para se proteger e buscar justiça no caso de passar por situação semelhante.
Casos reais de abuso
Fui criada sem pai, e construí minha referência paterna em um primo da idade de minha mãe. Passei a chamá-lo de pai assim que pronunciei as primeiras palavras. Cresci considerando-o um pai de criação e por isso ele tornou-se meu padrinho, e me batizou na igreja católica. Quando eu tinha aproximadamente 15 anos de idade, ele me chamou em seu trabalho, achei que seria mais uma bronca, ou uma reclamação por algum namoradinho… Sei lá, fiquei apreensiva e atendi ao seu chamado o mais rápido possível. Chegando lá, ele me levou ao seu escritório, trancou a porta e começou a conversar comigo. Disse-me que eu já estava crescida, que tinha necessidades materiais e tinha uma ótima oportunidade para me oferecer. Ele me propôs tirar fotos sensuais, as quais ele venderia para algum site e me daria o dinheiro. Fiquei sem reação, aquele homem que eu considerava o meu pai estava propondo me fotografar nua… como assim? Ele falava sem parar os prós da negociação, eu já nem ouvia. Eu não acreditava nos meus olhos, nos meus ouvidos, eu estava mesmo ali? A certa altura da conversa, ele levantou, abriu o zíper da calça e colocou o pênis pra fora. Eu estava atordoada. Ele fez com que eu pegasse e o masturbasse, enquanto ele me ordenava ficar quieta. Me desesperei, ameacei gritar caso ele não abrisse a porta para que eu fosse embora, e então ele o fez. Saí daquele lugar me sentindo imunda, suja, o que eu acabei de fazer? Eu masturbei o meu padrinho, meu pai. Deveria ter gritado antes, acabado com aquilo tudo de vez, mas eu não tinha reação, não consegui fazer nada. Carrego comigo essa culpa, esse tormento. Hoje tenho 23 anos e essas cenas vêm em meus pensamentos frequentemente. O meu agressor nunca foi penalizado, eu nunca o denunciei, nem mesmo para minha família. Eu só queria alguém para chamar de pai, e escolhi a pior pessoa que poderia existir para fazer isso.
Com um namorado é muito difícil a gente perceber o que é agressão ou não. O conheci quando eu ainda era virgem, e isso se mostrou muito excitante para ele. Começaram as insistentes iniciativas, e sempre que a gente dava uns amassos mais quentes ele fazia cara de triste porque eu não transava com ele. Nisso eu acabei cedendo. Algumas vezes quando eu não estava com nem um pouco de vontade vinham de novo as insistências, e eu acabava cedendo. Eu sentia nojo de mim mesma, raiva por eu não querer, por não satisfazer ele, isso me incomoda muito até hoje. Acho que as situações mais graves foram duas vezes em que ele tinha bebido e ficou muito agressivo. A primeira vez, quando transamos, ele fez muito forte e me machucou bastante. E na segunda ele me bateu durante o ato. Ele pediu desculpas e disse que ficava fora de si quando bebia. Acho que por conta do apego sentimental que tenho a ele, ainda mantenho o relacionamento. É muito duro admitir que você é vítima do homem que você ama, e você sempre cai naquela de que “foi só dessa vez”.
Tinha 19 anos e procurava estágio. Na época, estava no segundo ano de faculdade e coloquei na cabeça que eu precisava a todo custo começar a trabalhar. Foi quando enviei currículo para uma vaga em uma assessoria de imprensa que prestava serviços para times de futebol. Eu, particularmente, nem assisto a jogos ou torço para algum time, mas resolvi me candidatar e fui chamada para o processo seletivo. Lembro que o homem que fez nossa dinâmica de grupo fazia perguntas meio estranhas. Ele queria saber se namorávamos, já que teríamos de trabalhar em horários diferentes por causa dos jogos. Eu respondi que era solteira e, como o clima estava bem informal, soltei piadinhas de “como os paulistanos eram frouxos”. Todos riram, inclusive ele. Sei que, ao final da entrevista, eu tinha ficado próxima dele, mas mais pela zoação que por qualquer outra coisa. Quando fui me despedir dele, disse que ele tinha gostado de mim, mas nunca imaginei que isso seria além do profissionalismo. Eu queria a vaga. Quando cheguei em casa, ele pegou meu celular dos contatos dos candidatos e começou a me mandar mensagens sobre como tinha gostado de mim e como queria estender nosso papo para um ambiente novo. Ele queria sair comigo e sabe-se lá o que mais. Ao negar o convite dele, ele começou a me xingar, dizendo que não era profissional e me ameaçou caso contasse para alguém. Fiquei me sentindo extremamente culpada porque eu tinha soltado as gracinhas e eu tinha dado brecha para que ele tivesse se comportado assim. Só que, na verdade, NADA justifica a atitude dele. Depois fiquei sabendo que ele assediou outras meninas – inclusive amigas minhas – pelo Facebook.
Eu tinha cerca de 14 anos quando aconteceu. Um primo meu sempre gostou de ficar abraçado a mim, seja eu de frente a ele ou de costas. Passava a mão em meu rosto e exaltava a minha beleza. Na minha inocência, eu via como uma forma de afeto e gentileza, até porque ele era como se fosse um dos meus irmãos. Mas certa vez aconteceu algo diferente. Ele ficou na minha casa por uns três dias seguidos, dormindo lá. Um dia eu estava sozinha na cozinha à noite, descansei a cabeça em cima dos meus braços sobre a mesa, quando ele chegou, passou por mim e me deu um beijo no pescoço. Achei estranho. Em seguida ele foi deitar, eu também fui. Eu dormia no mesmo quarto que meus pais e ele estava em outro com meus irmãos. Ouvi quando ele se levantou, abriu um zíper (ele andava com uma pochete) e tirou algo que fez barulho, acho que era plástico e deduzi que fosse camisinha. Abriu a porta do quarto em que eu estava e entrou, deitou na minha cama, eu estava deitada de barriga para baixo e senti quando ele abaixou a coberta. Na hora eu mandei que ele saísse, ele hesitou e mandei novamente, e foi só depois disso que ele saiu. Detalhe: meu pai estava no quarto, mas não viu nada. No dia seguinte ele foi embora e desde então nunca mais o vi, porque graças a Deus ele se mudou de estado. Minha família não sabe de nada disso, nunca tive coragem de contar.
Aos 15 anos conheci um rapaz de 24 que parecia muito legal. Começamos a ficar, mas eu não queria transar. Um dia, fui à casa dele assistir um filme, e lá ele me fez carícias que eu não queria, tentava me forçar com o argumento de que eu iria gostar. Mas eu não estava gostando, nem queria, e mesmo assim aconteceu. Não me dei conta de que era um abuso. E aquela não foi a única vez. Ele agia como meu dono e eu pensava que isso era normal. Ele me ligava, fazia ameaças e me agarrava até eu ceder. Ele dizia: “Não posso forçar você, mas posso fazer você querer”. Ele nunca usava camisinha e me obrigava tomar pilulas do dia seguinte. Comecei a ter sangramentos anormais e queria ir ao médico, sem que alguém da minha família soubesse. Menti para uma amiga dizendo que fui abusada por ele para que ela fosse comigo. Ou melhor, eu pensei que havia mentido, mas eu menti para mim mesma por muito tempo, enquanto me cobria de culpa. Ela me acompanhou até a emergência de um hospital e os médicos me seguraram por lá para que chamasse algum parente. Todos souberam e o caso parou na justiça, mas não deu em nada. Descobri depois que o sangramento era por causa das pílulas que tomei e que contraí herpes genital. O maior problema é que, para todos, a culpa foi minha. Minha me mãe disse: “Você mereceu. Você procurou por ele”.
Eu tinha uns 16 anos, com aparência física de 12. Sempre fui pequena e bem magra. Minha vida era corrida, fazia cursos, ballet e capoeira. Um vizinho casado sempre puxava assunto sobre o que eu fazia, dizia que achava muito legal e às vezes me parava na rua. Eu era muito inocente e não via maldade em nada. Um dia ele ficou me esperando e começou a perguntar se eu podia faltar um dia no curso para ir ao cinema com ele. Tive medo, meu coração disparou e não sabia como sair dessa situação. Falei que não podia e nem queria ir ao cinema, a não ser que minha mãe e a esposa dele fossem junto. Ele disse que gostava mim e queria que eu ficasse com ele. Eu neguei, corri para casa e contei tudo pra minha mãe. Ela falou pra ele se não me deixasse em paz chamaria a policia. Um amigo me deu um estilete e andei com ele por dois anos, sempre desviando o meu caminho pra não passar pela casa dele. Até hoje quando eu vejo esse homem me dá arrepios.
Certa vez na casa de uma amiguinha, os irmãos dela me trancaram em um quarto com outro menino da minha idade, e nos obrigaram ficar pelados e nos beijar. Se a gente não fizesse, eles contariam ao meu pai que eu gostava de ficar pelada pra eles. Como meu pai sempre dizia que a culpa era minha por tudo, comecei a aceitar essas coisas – o pensamento dele era que mulher serve pra fazer as vontades dos homens. Quando me mudei de cidade, a mãe de uma amiga ensinou que não devíamos deixar ninguém passar a mão na gente, e eu descobri que o que acontecia comigo não era normal. Me senti suja.
Eu tinha uns 13 anos quando comecei a sair sozinha. Mas eu era bastante inocente, já que meus pais nunca tiveram uma conversa sobre sexo comigo. Um dia me envolvi com um cara de uns 30 anos, que sempre foi muito simpático comigo. Certa vez ele me levou a uma sala e me colocou contra a parede, falou que dali eu não escapava dele. Eu não queria transar, não tinha vontade alguma, até porque eu era virgem e não sabia o que estava acontecendo. Ele me pegou e me colocou em cima de uma mesa e acabamos transando contra a minha vontade. Quis muito contar para os meus pais, mas tinha medo da reação deles. Já aos 14 anos resolvi contar para minha mãe. Ela contou pra o meu pai. Ele quis processar o cara que fez isso comigo, mais eu estava com medo de virar uma confusão ainda maior e ele querer fazer alguma coisa conosco. Hoje tenho 18 anos e vejo que isso que ele fez comigo é imperdoável, e quando meu pai queria denunciar, eu deveria ter deixado.
Fui adotada quando tinha um ano, por um casal que já tinha dois filhos: um menino de 18 anos e o mais velho de 19. Peguei BIRRA do meu irmão mais velho aos 5 anos, porque ele passava a mão em mim e dava palmadas na minha bunda. Meu pai o protegia por ele ter paralisia cerebral, era uma criança no corpo de um homem. Uma empregada me disse certa vez: “Cuidado quando for tomar banho, sempre tem alguém te olhando”. Sempre convivi com esse medo. Aos 22 anos, tive meu primeiro filho, e logo meu irmão disse que, agora, já podia “meter em mim”, já que eu não era mais virgem. Afinal, era pra isso que eu tinha sido adotada, para dar prazer para ele. Meu desespero foi tão grande que eu só pensava em sair de casa o quanto antes. Fui embora, nunca mais nos vimos e não convivemos como uma família feliz. Somos brigados e até hoje pensam que eu fui a errada. Minha história não é tão diferente, nem mais fácil e nem pior, apenas muito dolorosa pra mim.
Quando eu tinha uns 5 ou 6 anos de idade, minha família morava no quintal da casa da minha tia. Lá também tinham outras casas, e em uma delas morava uma menina de uns 18 anos. Ficamos amigas e, apesar da idade mais avançada, ela sempre brincava comigo. Um dia ela me chamou para tomar banho junto com ela e eu fui. Enquanto ela tomava banho eu ficava brincando no chão, até que ela se deitou e abriu as pernas e disse que iria me ensinar uma coisa. Pediu para eu ficar lambendo entre as pernas dela. Eu, como era uma criança e não entendia, fazia tudo que ela mandava. Todos os dias isso se repetia e depois ela escovava meus dentes, me dizendo que eu não podia contar pra ninguém. Por anos eu apaguei essa memória. Com o passar do tempo percebi que o ela fez comigo foi um abuso, e eu sempre tive vergonha de contar para alguém o que aconteceu na minha infância.
Era umas três horas da tarde. Eu fui à farmácia. No caminho um cara me seguiu e, em uma rua mais deserta, colocou o pênis para fora, me puxou, tentou me jogar no chão, puxou meu cabelo e me arranhou. Por sorte eu consegui sair correndo, peguei um ônibus, ele seguiu o ônibus de bicicleta, e na primeira oportunidade eu desci, atravessei a rua correndo e peguei outro ônibus para ir para casa. Quando cheguei, ao invés de me apoiarem, meu familiares questionaram por que eu tinha ido à farmácia sozinha, e por que eu estava de short. Nunca mais consegui andar tranquila, sempre tenho medo do que pode acontecer.
Tinha uns 10 anos e passava férias na casa da minha avó. No mesmo quintal morava um tio meu que é caminhoneiro. Certo dia ele propôs que eu fosse com ele comprar uma pizza para o lanche, já que ele tinha ficado com o caminhão da empresa. Quando já estávamos dentro do caminhão e distante da casa da minha avó, ele começou a acariciar minha perna e dizer que iria me ensinar o que era prazer. Tive muito medo, mas o ameacei dizendo que iria abrir a porta do caminhão e me jogaria na estrada. Voltamos para casa e não tive coragem de contar a ninguém naquele momento. Tempos depois, contei à minha mãe, mas ela nunca acreditou em mim. Hoje tenho uma filha de 14 anos e não deixo que ele tenha proximidade com ela por medo. Eu era uma criança e ele é meu tio, uma pessoa que deveria me proteger.
Fui abusada, e agora?
É importante que toda mulher saiba como se defender legalmente de um abuso. O primeiro passo deve ser procurar por uma delegacia e fazer uma denúncia, abrindo um Boletim de Ocorrência. Depois, é preciso representar contra o agressor, abrindo um processo contra o homem que a agrediu. Apenas após manifestar esse desejo, a lei pode agir a seu favor. Essa etapa é a mais importante e decisiva, além de ser muito longa. Muitas mulheres não seguem com a denúncia e, com isso, a polícia não pode agir. E isso acontece com a grande maioria dos crimes dessa natureza, que entram nas chamadas cifras negras – lista de crimes não solucionados ou punidos.
Fui estuprada, o que eu faço?
Sendo um caso de estupro, além de poder procurar uma delegacia para fazer a denúncia, a mulher também deverá passar por um hospital para fazer exames e tomar medicações contra doenças sexualmente transmissíveis e para prevenir a gravidez. Para isso, basta procurar por um pronto atendimento ou um hospital referência – em cidades que têm, como São Paulo, que tem o Pérola Byington. Em casos onde a mulher já está grávida, uma equipe multidisciplinar analisa o caso e então decide, junto com a vítima, sobre o aborto.
Nota da editora: Assim como no caso de Valentina, a divulgação dessas histórias não busca polemizar, muito menos gerar audiência. Acreditamos que ao compartilharmos esses relatos ajudamos outras mulheres a entender o que é a violência: seja um estupro velado, seja no trabalho, seja no namoro com sexo não consentido. Não podemos nos calar, nem nos culpar. Precisamos educar filhos para uma sociedade mais consciente do respeito ao próximo. Agradecemos muito a todas as leitoras que confiaram em nós para contar suas histórias e suas dores.
Acesse no site de origem: Mulheres contam histórias reais de abuso sexual na família, estupro no trabalho e mais. Saiba como se proteger (Bolsa de Mulher, 22/03/2015)