(Luciana Araújo/Agência Patrícia Galvão, 02/06/2014) O anúncio da aposentadoria prematura do presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Joaquim Barbosa, aos 59 anos, gerou uma série de reportagens sobre a atuação do primeiro negro a ocupar o assento de presidente da máxima Corte judiciária do país. A maioria delas, no entanto, destacou os aspectos polêmicos das decisões tomadas pelo presidente do STF, especialmente na condução do julgamento da Ação Penal 470 e na relação com os outros ministros da Corte.
Alguns noticiosos chegaram a resgatar que, antes de Barbosa, outros dois negros passaram pelo Supremo – Pedro Lessa entre 1907 e 1921 e Hermenegildo de Barros, de 1919 a 1937. Contudo, ambos não reivindicaram a identidade racial e apenas Joaquim Barbosa alçou ao cargo de chefe do Poder Judiciário brasileiro, após 124 anos de existência do Supremo sob esta denominação.
A Agência Patrícia Galvão ouviu duas especialistas na questão racial e ativistas da causa antirracista no Brasil sobre o significado simbólico da nomeação e permanência do mineiro Joaquim Barbosa no STF, seu legado e os desafios que seu afastamento coloca para o Judiciário e a sociedade na busca de manter e ampliar a representatividade nos espaços de poder daqueles que são mais da metade da população do país.
Para a assistente social e coordenadora da ONG Criola, Lúcia Xavier, “uma das questões mais importantes que o racismo acaba gerando é a ideia de que sempre teremos o primeiro negro em algum lugar, algo que inicialmente parece muito positivo como simbolismo da participação do negro nesse processo. Esse simbolismo fica mais denso exatamente porque, se olharmos sob uma perspectiva histórica, veremos que levamos tanto tempo para ter um único negro, e pode ser que isso não se repita nunca mais. Então, ao mesmo tempo em que esse fato histórico tem uma representação simbólica importante para a comunidade negra, por outro lado aponta que ainda não há na democracia brasileira uma perspectiva de inclusão dos grupos raciais e étnicos na composição do poder e em todos os outros processos sociais, políticos, econômicos e culturais. Esse ser primeiro não tem sentido superlativo, mas sim do atraso, de que aquele negro conseguiu pegar o bonde andando”.
Para Maria das Dores do Rosário Almeida, a Durica, representante da Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB), a passagem de Joaquim Barbosa pelo Supremo “é um marco para a luta antirracista no Brasil. A presença dele provou que é possível fazer justiça, como mostraram todas as decisões que ele tomou. Pesou muito sobre ele ser negro no momento de tomar essas decisões, o fato de ser um negro naquele espaço de poder, assim como é difícil para toda a população negra ter que provar a todo momento que aquele é o nosso lugar, que temos condições de estar ali. O legado que ele deixa, não só para a população negra, mas para todo o Brasil, e em particular para a juventude, é esse: de que é possível a justiça ser feita, um negro chegar a um espaço como este, e que somos capazes de estar lá”.
No entanto, Durica destaca que esse fato, “por outro lado, mostra que as forças contrárias também são capazes de fazer com que a nossa permanência nesses lugares se deem por pouco tempo. Mas nesse pouco tempo ele provou sua capacidade intelectual, sua honestidade, e que é possível fazer mudanças e que a gente pode acreditar ainda na justiça deste país, e que a juventude negra – homens e mulheres – podem sonhar que esse lugar é nosso”.
O desafio do enfrentamento ao racismo institucional
Lúcia Xavier avalia que a passagem de Joaquim Barbosa trouxe em si um questionamento e desafio que se perenizam: o enfrentamento institucional à questão do racismo no Brasil. “Será que os próximos governos terão a intenção de ampliar essa ação afirmativa? Ou será que darão a desculpa de que não existe gente qualificada para este lugar? Ou ainda que isso não importa porque o problema do Brasil não é o racismo?” Na opinião dela, o ministro levou ao STF uma ação política que exprimiu o compromisso com a questão das minorias, o respeito à Constituição e uma dimensão maior de democracia e do Direito. “Ao mesmo tempo, essa figura imponente, que fala tantas línguas, tem mestrado, doutorado, também trouxe questionamentos para essas instituições sobre como enfrentam o racismo institucional”.
Para Durica, esse debate caberá não só às instituições e poderes constituídos, mas também à sociedade organizada, que deve incidir para que seja possível avançar. “É papel nosso enquanto sociedade brasileira fazer com que esse lugar seja ocupado novamente por um negro ou uma mulher negra. E acho que faltou do movimento negro de todo o Brasil falar que esse lugar tem que ser ocupado novamente por uma pessoa que tenha o mesmo know-how que ele, que não pode ser qualquer pessoa”.
Durica destaca que “o que sentimos agora pela saída dele tem a ver com a pena de não esgarçar um pouco mais esse descompromisso que uma instituição como essa tem em atuar em prol de um Estado mais democratizado, olhando de fato para as dificuldades que o país enfrenta e mostrando que é possível superá-las. O que não quer dizer que não existam outros lá com as mesmas qualidades”. Lúcia Xavier destaca a atuação do presidente anterior a Barbosa, o ministro Ayres Brito, como expressão de que há outras contribuições ao processo de adequação do Supremo à realidade do país em que vivemos hoje, onde os negros ainda são maiorias nas favelas, nos presídios e nas taxas de homicídios violentos, mas têm cada vez mais visto crescer sua autoestima e buscam seu espaço.