Não era amor, era controle: a violência psicológica como instrumento da violência doméstica, por Lívia Reis

Foto: Freepik

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27 de março, 2025 Portal Catarinas Por Lívia Reis

Aquela “briga boba” pode ser só o começo.

Para além de feridas que deixam cicatrizes, a violência psicológica, largamente utilizada em contextos de violência doméstica, é um instrumento de concretização da desigualdade de gênero e de manutenção da situação de subordinação das mulheres em relação aos homens.

Vergonha, culpa, medo, baixa autoestima, ansiedade, depressão, transtorno de estresse pós-traumático, transtornos alimentares, transtornos do sono, abuso de bebidas alcoólicas e outras drogas, ideação suicida. Agressão, lesões corporais, cárcere privado, abuso sexual, feminicídio. Estas são apenas algumas das possíveis consequências da prática de violência psicológica contra a mulher, e é por isso que a conversa sobre esse assunto é tão importante e urgente.

Afinal, o que é violência psicológica?

A Lei Maria da Penha (11.340/06), ensina em seu art. 7º que há vários tipos de violência que podem ser praticados contra a mulher e enumera a violência psicológica no inciso II:

II – a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;

Para melhor entendimento, podemos dividir as condutas enumeradas em quatro grupos e listar alguns comportamentos que as exemplificam:

  • Constrangimento, humilhação, insulto e ridicularização são os xingamentos, a inferiorização, a culpabilização. Exemplos: “Você não serve nem para fazer uma comida que preste”; “Está ficando velha e feia”; “Você me provoca e por isso fico irritado”.
  • Ameaça, manipulação e chantagem são formas de controlar o comportamento da mulher e coagi-la a agir como o homem deseja. Exemplos: “Se você usar essa saia, vou ficar chateado” (manipulação); “não sairei com você usando essa saia” (chantagem); “se insistir em sair com essa saia, vou passar a tesoura nela e em você” (ameaça).
  • Exploração é usar os recursos e a força de trabalho daquela mulher em benefício próprio. A perpetuação da crença de que o trabalho doméstico não remunerado é obrigação exclusiva da mulher é uma forma naturalizada de exploração.
  • Vigilância constante, perseguição contumaz, violação de intimidade, isolamento e limitação do direito de ir e vir são condutas que aprisionam a vítima e a colocam em constante estado de alerta, por saber que está sendo vigiada e que comportamentos que desagradem o parceiro podem gerar consequências negativas para ela. Exemplos: parceiro que monitora o celular, controla os horários de saída e chegada, provoca o afastamento de amigas e familiares, permite que a mulher saia de casa apenas acompanhada dele ou para trabalhar.

Em 2021, a Lei 14.188 introduziu no Código Penal o artigo 147-B, que tornou crime a prática de violência psicológica, reproduzindo, em termos mais restritivos, condutas já previstas na Lei Maria da Penha. Vale lembrar que se trata de rol exemplificativo, podendo o conceito de violência psicológica abarcar outros atos que causem os danos previstos na legislação.

É de grão em grão

“Precisa esquecer para se curar”; “foi só uma traição”; “uma mentirinha boba”: frases comumente proferidas quando uma mulher relata que foi alvo de violência psicológica. Tais condutas são consideradas por muitas pessoas como “menores”, sem importância, ou até mesmo como não violência.

No entanto, as consequências da violência psicológica na vida de uma mulher podem ser devastadoras e durar por muitos anos. Uma mentirinha, contada em cima de outra e depois de outra, pode derrubar a confiança dela em si mesma e fazê-la questionar suas certezas. Um simples xingamento, quando reiterado todos os dias, pode enfraquecer as crenças e minar a autoestima.

Crises de ciúme, muitas vezes entendidas como “excesso de cuidado”, duram mais que um momento, pois vão refletir na forma como a mulher se comporta dali para frente, precisando moldar o andar, o olhar e as palavras, para não desagradar o parceiro, na tentativa de que não ocorram novos rompantes.

Através da violência psicológica constante, a mulher que existe ali vai sendo apagada, substituída por algo que caiba nos moldes determinados pelo homem. Como podemos desconsiderar ou menosprezar a gravidade de uma ferramenta de controle tão poderosa?

Essas condutas e seus reflexos demonstram que não é preciso força física para oprimir e dominar uma mulher. Há formas mais sutis e aceitas pela sociedade de devastá-la internamente, que causam perda de autonomia e identidade, prejudicam a saúde emocional e impõem escolhas de vida que serão perpetuadas no tempo, muitas vezes para além do fim do relacionamento.

Na classificação trazida pela Lei Maria da Penha, não existe violência menor, porque todas elas têm consequências graves e devem ser tratadas com a mesma seriedade. Infelizmente a violência psicológica é extremamente naturalizada e pouca atenção é dispensada aos graves danos causados por ela. Controle e opressão são confundidos com amor, carinho e atenção condicionados à subserviência.

Uma arma de ação discreta e perene

A violência psicológica é a mais recorrente em relações íntimas e a menos denunciada. É difícil reunir forças para trazer essas histórias a público, pois se até as violências física e sexual, que muitas vezes deixam marcas visíveis no corpo, são constantemente desacreditadas, o que dizer da violência psicológica?

Por isso, em grande parte dos casos, pode se passar muito tempo entre os atos e a denúncia, seja porque a mulher não sabia identificar o que viveu como violência, seja pela vergonha e o medo de ser julgada e condenada por uma sociedade que valida esse comportamento masculino e tem como regra geral a culpabilização das mulheres nessa situação.

Quando finalmente cria coragem, a vítima é colocada sob julgamento, tendo seu relato questionado por todas as razões até aqui mencionadas, somadas ao fato de que muito tempo se passou e o que ela deveria fazer agora não é denunciar, mas esquecer, “superar” o trauma. De preferência sozinha e em silêncio.

Precisamos refletir sobre a reação social desencadeada diante das denúncias dessa natureza e compreender que é a normalização e o menosprezo que garantem a eficácia da violência psicológica como ferramenta estruturante, que adoece mentalmente as mulheres e bloqueia caminhos possíveis, limitando os espaços que ocupam, os objetivos que conseguem alcançar e sua forma de viver e de estar no mundo.

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