(O Globo, 09/05/2016) Pesquisadora do Berkman Center, da Universidade de Harvard, iraniana veio ao Rio para conferência sobre racismo e discurso raivoso na internet
“Sou iraniana, mas cresci na Costa do Marfim. Em Harvard, pesquiso sobre discursos racistas nas redes sociais, comparando a Colômbia, que foi minha casa por mais de dez anos, com o Brasil, onde também já morei, como em outros 20 países. Falo cinco línguas e meia — estou aprendendo árabe.”
Conte algo que não sei.
Vi uma semelhança muito grande entre Brasil e Colômbia, nas dinâmicas culturais, sociais e políticas. São os países com o maior número de afrodescendentes nas Américas, com a Colômbia tendo de 30 a 50%, e o Brasil, de 50 a 70%. Ao mesmo tempo, 70% dos pobres no Brasil são afrodescendentes, e a estatística é maior na Colômbia. Ambos os países são extremamente violentos e de população jovem, e os jovens negros são os mais afetados pela violência, como vítimas ou sendo parte dela.
Há diferença na maneira de como esta violência se manifesta?
A Colômbia tem uma guerra que não vai acabar com o tratado de paz que está em discussão. O Brasil está no mesmo nível em números de mortos, mas não está oficialmente em guerra. Comecei a fazer essa comparação: por que lá há reconhecimento da situação e aqui não, ela é tratada como uma violência da delinquência? No Berkman Center, observamos a representação dos jovens negros nos dois países, e vemos que os meios de comunicação tradicionais foram aumentando e fermentando uma imagem negativa. Com a internet, ficou pior: foi normalizado e legitimado.
Como esse processo acontece?
Há uma correlação muito forte entre o discurso que legitima a violência contra esse grupo e a violência que acontece, e também entre o racismo, a exclusão social e a violência. O racismo é uma relação de poder. Se você acha que o outro é menos que você, você permite a ação negativa a essa pessoa. No começo de qualquer situação de violência extrema, genocídios, guerras, massacres, sempre houve como fonte um discurso de ódio. Se realmente queremos ver como começam esses fenômenos, precisamos olhar para o que está acontecendo agora, que é esse discurso de ódio.
A internet é um espaço que apenas exibe esses discursos, ou ela os incentiva?
As duas coisas. O discurso de ódio sempre existiu. O que acontece, com a internet, é que qualquer pessoa pode divulgar e ter uma audiência, não é preciso ser um líder. Outra coisa é o lado anônimo. Quem não tem coragem de dizer uma coisa assim na rua vai usar esse direito do anonimato, mas abusando dele. No meio digital, o discurso ganha mais poder, se propaga mais rapidamente e causa muito mais danos. É importante aceitar que o discurso de ódio on-line pode não só excluir, mas matar muitas pessoas.
Como é ser estrangeira nos países que pesquisa?
Minha perspectiva não é da América Latina ou afrodescendente, então, por esse lado, é limitada. Mas não quer dizer que não vivi isso. Na Costa do Marfim, estudei em uma escola dentro de uma colônia francesa. Fui muito discriminada, sempre tive que fazer mais para talvez receber um tratamento digno. “Você é do Irã, você é terrorista’’, diziam. Você internaliza esse processo. Isso só mudou quando ganhei uma bolsa na Holanda para estudar a história do Irã e aprender que eu vim de um lugar que contribuiu muito para a Humanidade. Sem mudar essa imagem que tinha de mim mesma, não teria chegado onde cheguei. É o mesmo processo com o jovem negro no Brasil, na Colômbia ou em outro lugar: o sentimento de não ser bom o bastante porque não é branco.
Clarissa Stycer
Acesse o PDF: Niousha Roshani, antropóloga: ‘O discurso de ódio on-line pode matar’ (O Globo, 09/05/2016)