(O Globo, 02/04/2014) Na terra em que o carnaval é um desfile de seios e bumbuns nus, ou quase, e as praias são uma exposição de corpos mal cobertos por biquínis com o sugestivo nome de fio-dental, aqui onde, conforme os estereótipos, parecem reinar a tolerância e a liberalidade de costumes, um paraíso enfim da sensualidade feminina, como explicar que 65% das pessoas ouvidas numa pesquisa concordem que “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”? E mais: o que dizer das ofensas e ameaças de violência física que integrantes do grupo virtual “Eu não mereço ser estuprada” vêm sofrendo pela internet só porque protestam pacificamente contra o resultado do levantamento? A jornalista e escritora Nana Queiroz, criadora do movimento, é a principal vítima dos ataques, muitos dos quais provenientes de mulheres, que postaram mensagens como essa: “Espero que você seja estuprada.” A violência chegou ao ponto de se convocar os internautas para um “estupro coletivo” das integrantes da campanha liderada por Nana.
O fenômeno, que repercutiu até na imprensa francesa, chocou especialistas como a socióloga Márcia Oliveira, para quem esses e outros dados mostram que a sociedade brasileira ainda mantém um “pensamento machista” que atribui à mulher a culpa pela violência sofrida. A alegação cínica é que o homem estupra porque é provocado eroticamente. Exemplo disso está na própria pesquisa, em que a maioria repassa a responsabilidade do crime para a vítima. “Se elas soubessem se comportar, haveria menos estupros”, responderam 58,5% dos entrevistados. Márcia ironiza, lembrando Manaus, onde usar pouca roupa, devido ao clima, é normal. “É como afirmar que as mulheres no Norte querem ser violentadas.”
São preconceitos tão arraigados na cultura brasileira que mesmo a Lei Maria da Penha, considerada no gênero a legislação mais avançada do mundo, não conseguiu baixar o chamado feminicídio. Calcula-se que, de 2009 a 2011, ocorreu uma morte violenta de mulher a cada hora e meia. E em 2012 houve seis estupros por hora. Essa permissividade criminosa é ilustrada também por números. Se, por um lado, 70% dos entrevistados concordam que marido que bate na esposa deve ir para a cadeia, por outro, 89% deles acham que a briga entre casal deve ser resolvida pelos dois; em outras palavras, vigora o ditado popular: “Em briga de marido e mulher não se mete a colher.” Uma forma de garantir ao mais forte o direito à covardia e à impunidade.
Para mudar esse lado sombrio de um país paradoxalmente solar e aparentemente liberal, Márcia acredita que “talvez precisemos de uma geração inteira”. O movimento “Eu não mereço ser estuprada”, que recebeu a solidariedade da presidente Dilma, é um pequeno passo, mas corajoso e original, na direção da mudança.
Acesse o PDF: Nossa face obscura, por Zuenir Ventura