10/02/2013 – Demografia mortífera para as mulheres, por Debasish Roy Chowdhury

10 de fevereiro, 2013

(O Estado de S. Paulo) Enquanto a Índia se inteirava de um caso pavoroso de estupro que estarreceria o mundo, uma garota de 11 anos do Condado de Qincheng, Província de Gansu, estava caminhando para a escola, chateada talvez por ter de assistir aula muito cedo numa manhã de inverno. No momento em que fazia a curva para um trecho deserto do caminho, um homem saltou sobre ela e a arrastou para os arbustos, onde a estuprou e matou. O jovem foi preso quatro dias depois. O mesmo ocorreu com os seis homens que, juntos, estupraram e brutalizaram uma jovem de 23 anos, que estudava para se tornar paramédica, dentro de um ônibus em movimento em Nova Délhi.

A vítima do estupro em Nova Délhi morreu após quase duas semanas respirando com a ajuda de aparelhos. Por volta da mesma época, a polícia do Condado de Dongguang na Província de Hebei encontrou o corpo de uma menina de 8 anos que havia desaparecido na semana anterior aos estupros em Qincheng e Nova Délhi. Ela estava voltando para casa depois da escola, provavelmente aliviada ao fim de um longo dia, quando um jovem de motocicleta a raptou e na sequência a estuprou e matou.

O abominável estupro de 16 de dezembro em Nova Délhi instigou uma muito adiada discussão sobre a segurança das mulheres na Índia, onde ocorre um estupro a cada 30 minutos. A TrustLaw, uma provedora de serviços gratuitos de informação jurídica, classificou recentemente a Índia como o pior dos 19 países do G-20 para mulheres, numa pesquisa em que a China ficou em 14º lugar.

O baixo status das mulheres somado com uma governança indiferente, uma mentalidade patriarcal, policiamento precário, leis arcaicas e a morosidade do Judiciário teriam conspirado para criar a tempesta de perfeita em que a Índia se encontra.

Apesar de cada um desses fatores ser um problema grave, eles não explicam inteiramente por que a violência contra mulheres cresceu tanto em algumas partes da Índia. Os casos de estupro registrados cresceram quase 700% desde 1970, e quase dobraram entre 1990 e 2008.

Evidentemente, a mentalidade do indiano médio não deve ser mais patriarcal, nem as leis mais arcaicas agora do que eram em 1970 ou 1990.

Solteiros. Isso levou muitos demógrafos e sociólogos a acreditar que o verdadeiro gatilho não está aí, e ele foi apontado tão diretamente na China quanto na Índia: a população crescente de homens solteiros.

Os dois países estão sentados em barris de pólvora causados pela multiplicação do que os chineses chamam de “galhos nus” (guang gun), ou homens incapazes de encontrar alguém para casar em razão da escassez de mulheres causada por uma proporção entre sexos anormalmente alta (relação quantitativa entre homens e mulheres), o que, por sua vez é o produto da tradicional preferência por homens nessas sociedades. Os “galhos nus” são assim chamados porque não contribuem para a árvore genealógica da família.

Apesar de o crime – sexual ou outros – não ser exclusividade de homens solteiros, evidências estatísticas mundiais mostram que uma quantidade desproporcional de crimes é cometida por esse grupo.

Sociedades que dão grande importância a casamento e linhagem só podem aumentar a frustração e a baixa autoestima dos que não conseguem iniciar uma família, aumentando o risco de violência dentro de um grupo que é o mais propenso a ela.

A Índia e a China têm proporções entre sexos terrivelmente parecidas no nascimento, criando milhões de homens excedentes a cada ano. Na Índia, nascem cerca de 109 meninos para cada 100 meninas, sendo que esse número chega a 120 em muitas partes.

Na China, a taxa está em torno de 120 meninos, e até 140 em províncias como Jiangxi e Henan. A proporção natural é de cerca de 105 meninos para 100 meninas. A natureza fornece um pouco mais de homens do que de mulheres no nascimento porque os homens têm taxas de mortalidade mais altas, de modo que a relação se equilibra quando eles chegam à idade reprodutiva.

Índia e China, cada uma, têm um excesso de 37 milhões de homens. Com exceção da Arábia Saudita, todos os demais países do G-20 têm ou mais mulheres do que homens ou os números são quase iguais. Apesar de ocorrerem estupros em todos os lugares, os estupros predatórios como o de Nova Délhi aumentam quando as proporções entre sexos são anormais.

“Durante anos, pesquisadores notaram que o crime violento contra mulheres aumenta quando a proporção entre sexos se torna mais masculina”, diz a professora Valerie Hudson da Universidade A&M do Texas, que foi coautora com a dra. Andrea den Boer do livro seminal Bare Branches: The Security Implications of Asia”s Surplus Male Population (Galhos nus: as implicações de segurança da população masculina excedente da Ásia, em tradução literal).

O respeitado demógrafo chinês Jiang Quanbao, do Instituto de Estudos de População e Desenvolvimento na Universidade Xian Jiaotong, concorda: “O estupro de Nova Délhi pode ser associado aos sistemas social, cultural, legal e judicial. Mas uma questão negligenciada pode ser a proporção distorcida entre sexos”.

As sociedades com proporções entre sexos anormais são consideradas inerentemente menos seguras. Como descobriram Hudson e Den Boer, os homens que conseguem se casar nesses ambientes tendem a ter um status socioeconômico mais alto. Os que não conseguem são mais pobres, menos educados e com empregos marginais.

Como têm pouco a perder, eles exibem maior propensão à violência e a um comportamento mais desregrado, em especial quando se enturmam. Quase todos os suspeitos do estupro em grupo de Nova Délhi se encaixam nessa descrição.

“Esses homens já estão sob risco de estabelecer um sistema com base na força física para obter pela força o que não podem obter legitimamente. … Homens que não conseguem a oportunidade de desenvolver um interesse adquirido num sistema de lei e ordem gravitarão para um sistema com base na força física”, escreveram Hudsone Den Boer.

“O casamento é uma vigorosa força socializante”, diz Jiang. “A Índia deveria prestar a atenção na estrutura sexual da sua população. O problema dos “galhos nus” também está causando uma preocupação generalizada com o futuro da estabilidade doméstica na China.”

A falta de estatísticas prontas e confiáveis sobre estupro na China dificulta o estabelecimento de sua associação exata com o excesso de homens. Mas como a violência sexual tem mais a ver com violência do que com sexo, um padrão crescente de qualquer tipo de violência faz soar o alarme para demógrafos se eles vêm na esteira de uma piora das proporções entre sexos.

Segundo Mara Hvistendahl, a autora, que vive em Xangai, de Unnatural Selection: Choosing Boys Over Girls, and the Consequences of a World Full of Men (Seleção inatural: a escolha de meninos em detrimento de meninas e as consequências de um mundo repleto de homens, em tradução literal), não se trata apenas de crime violento. A proporção distorcida entre sexos também deve preocupar porque fez aumentar o tráfico de mulheres na China. Jiang descobriu que a escala de sequestros e tráfico de mulheres está crescendo de uma maneira alarmante.

Do total de casos de tráfico na China, 50% ou 60% envolvem hoje o sexo e a indústria de entretenimento. No passado, eles eram sobretudo para casamento. O tráfico e a migração do interior para as províncias costeiras mais ricas estão contribuindo para aumentar a desproporção entre sexos nas regiões subdesenvolvidas, deixando uma aldeia após outra repleta de homens deprimidos e inquietos.

E a situação vai piorar. A pesquisa de Jiang mostra que, de 2010 para cá, o número de homens em idade de casamento na China vem aumentando muito mais rapidamente. O excesso de população masculina na faixa de 20 a 49 anos superará 20 milhões em 2015; 30 milhões em 2025; 40 milhões em 2035 e 44 milhões por volta de 2040. Segundo algumas estimativas, entre 2020 e 2050, 15% dos homens chineses não conseguirão arranjar uma mulher.

Mortalidade. O problema do excesso de homens está ligado a um fenômeno que o laureado com o Nobel Amartya Sen chamou “mulheres desaparecidas” – um conceito que ele desenvolveu no início dos anos 90 para calcular o número de mulheres extras que o mundo em desenvolvimento teria se esses países tivessem a mesma proporção entre sexos do que no mundo desenvolvido.

Em números absolutos, Sen descobriu que mais de 100 milhões de mulheres haviam “desaparecido” em consequência de desigualdade e negligência que acarretavam um excesso de mortalidade feminina. Só a China, ele estimou na ocasião, tinha 50 milhões de “mulheres desaparecidas”.

Vários estudos desde então tentaram quantificar o número de mulheres “desaparecidas” e chegaram a números muito parecidos: 163 milhões de meninas na Ásia nas três última décadas, segundo Hvistendahl; embora alguns tenham calculado cerca de 2 milhões para China e 2 milhões para a Índia anualmente. Mas há uma grande diferença. Uma porcentagem muito maior – até 45% – de mulheres desaparecidas na China é perdida antes de nascer. Fatores pré-natais respondem por cerca de 11% das mulheres desaparecidas na Índia, indicando que a política de um filho para cada família exacerbou a tradicional preferência pelo filho homem na China criando um forte incentivo ao feticídio.

A tecnologia de determinação de sexo e o acesso fácil ao aborto facilitaram muito a escolha por gênero. Seguindo a política de um único filho, o censo de 1982 mostrou uma proporção entre sexos no nascimento de 108,5 meninos para 100 meninas. Esta cresceu para 113,3 meninos em 1990, 116,9 no censo de 2000, e hoje está em cerca de 120.

As taxas de criminalidade aumentaram proporcionalmente. Um estudo de pesquisadores da Universidade de Chicago, da Universidade Columbia, da Universidade Chinesa de Hong Kong e da Universidade Tsinghua revelou que entre 1988 e 2004, o número do excedente de homens na China comidades de 16 a 25 anos dobrou. As taxas de criminalidade também quase dobraram. O aumento excessivo de homens foi responsável por um sétimo de todo o aumento total da criminalidade no período. Mas a “seleção para o abate” de mulheres, como o coloca Hudson, tem ramificações muito mais amplas do quemeras perturbações da lei e da ordem. Ao longo da história da China, a discrepância na proporção entre sexos esteve na raiz de agitações sociais e políticas.

“A ameaça mais importante ao governo viria se uma violência de coalizões mudasse do objetivo de desviar recursos, por roubo e contrabando, por exemplo, para se apoderar do poder local, o qual poderia ser um trampolim para objetivos mais ambiciosos”, diz ela, citando a rebelião Nien de 1851, que abalou a dinastia Qing.

Os rebeldes Nien vieram de regiões empobrecidas com uma proporção entre sexos de pelo menos 129 homens para 100 mulheres, diz Hudson. Esses pequenos grupos de galhos nus começaram com contrabando e extorsão antes de formarem exércitos para desafiar o controle imperial.

Nos anos 1920 e 1930, a poligamia, combinada com o infanticídio, provocou um alto número de galhos nus. Não surpreende que esse período também tenha assistido ao crescimento de sociedades secretas, quadrilhas criminosas e cultos. Jiang disse que muitas quadrilhas recrutavam homens com a promessa de mulheres cativas.

A questão mais urgente é que a ascensão da criminalidade também pode agir como um forte catalisador da agitação social ao disseminar o descontentamento em massa, o que aponta para o papel vital que a proporão entre sexos joga na manutenção da ordem política – especialmente em países como a China, sem mecanismos institucionais para canalizar o ódio contra o governo. Mesmo numa democracia desorganizada como a Índia, muitos viram ecos do levante da Praça Tahrir do Egito nos protestos espontâneos de rua contra o estupro em Nova Délhi.

“Um agravamento da desproporção entre sexos intensificará a instabilidade tanto da Índia quanto da China. E a ameaça ao regime pode ser maior na China do que na Índia”, diz Hudson, sublinhando a mensagem que um estupro na distante Nova Délhi envia a Pequim.

Debasish Roy Chowdhury é médico-pesquisador do All India Institute of Medical Sciences, de Nova Délhi, e colaborador do Instituto Fernand Braudel

Acesse em PDF: Demografia mortífera para as mulheres, por Debasish Roy Chowdhury (O Estado de S. Paulo – 10/02/2013)

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