Eram 5h40, ainda estava escuro. Maria, 45, caminhava as três quadras diárias até seu carro para mais um dia de trabalho quando um homem de moto parou ao seu lado.
(Folha de S. Paulo, 23/12/2017 – acesse no site de origem)
“Eu quero você”, disse, sem rodeios, e começou a atirar dezenas de notas de dinheiro em sua direção. “Faz um boquete que eu te dou toda essa grana”, ele falou. Depois desceu da moto e tocou em seus seios e em sua genitália. Só a soltou quando ela começou a chorar e implorar para que parasse.
Maria, que teve seu nome alterado para não ser identificada, não foi a única vítima desse assediador. “O guarda da rua disse que depois ele fez isso com mais cinco pessoas”, conta ela. Tampouco foi a primeira ou a última vítima de assediadores no país.
Quatro em cada dez brasileiras (42%) relatam já ter sofrido assédio sexual, aponta pesquisa nacional do Datafolha –com 1.427 mulheres entrevistadas e margem de erro de dois pontos percentuais.
Para especialistas e representantes de grupos feministas, o número não surpreende. Elas dizem, inclusive, que a quantidade real de vítimas deve ser maior, mas que há receio delas de contar e também falta de percepção do que é assédio ou não.
“O assédio sexual tem um problema que é a falta de entendimento de que ele é uma violência. As mulheres vivenciam isso, mas entendem que é algo que faz parte de ser mulher. Essa identificação precisa ser trabalhada”, afirma Juliana de Faria, fundadora da ONG Think Olga.
Os dados ligados ao tema costumam variar em diferentes pesquisas. Um estudo feito em 2016 pela organização ActionAid, por exemplo, mostrou um índice ainda maior: 86% das 503 brasileiras entrevistadas já haviam sofrido assédio em público.
LOCAL, RENDA E COR
O levantamento do Datafolha mostra que um terço das mulheres (29%) conta ter sido assediada na rua, e um quinto (22%), no transporte público. O trabalho é citado por 15%, a escola ou faculdade, por 10%, e a violência em casa, por 6%. Uma mesma entrevistada pode ter relatado mais de um tipo de assédio.
Além das mais novas, quem sente mais o problema são as mais escolarizadas e as que têm maior renda familiar. Segundo a promotora Maria Gabriela Manssur, isso pode ser explicado principalmente pelo acesso à informação.
“A falta de campanhas educativas, de acesso à Justiça e de coragem para denunciar entre as mais pobres influencia. Elas podem perder o emprego, além de sofrer um julgamento social ainda maior.”
A delegada Sandra Gomes Melo, chefe da Delegacia Especial de Atendimento à Mulher do Distrito Federal, ressalta que, apesar de haver uma diferença nos tipos e locais de violência, todos os estratos de mulheres sofrem assédio.
“A violência não escolhe só a pobre, só quem tem escolaridade, só a mais nova. Talvez a mulher rica não vá sofrer tanto nos meios de transporte, porque não usa, mas vai sofrer no trabalho, por exemplo.”
A cor da pele, porém, é um fator influente. Entre as pretas e pardas, aproximadamente 45% dizem já ter sido assediadas, ante um índice de 40% entre as brancas.
“A mulher negra, como é hipersexualizada, sofre um assédio mais incisivo. O local dela não é o da beleza, é o de suprir necessidades carnais. Há uma dupla discriminação”, diz a advogada Thayna Yaredy, que é negra e representante do coletivo Rede Feminista de Juristas.
A pesquisa também indicou aumento nos relatos de assédio conforme o tamanho da cidade. Nos municípios com até 50 mil habitantes, 30% dizem ter sido vítimas, enquanto nos que têm mais de 500 mil moradores a taxa sobe para 57%.
CAMINHO DAS PEDRAS
Para estudiosas do tema, o combate ao problema passa inevitavelmente pela conscientização da população –tanto de homens quanto de mulheres– e por uma mudança na abordagem pelo poder público, seja nas polícias, na Justiça ou entre os legisladores.
O Código Penal só considera crime o assédio sexual quando há uma relação hierárquica entre as partes. A cantada na rua, por exemplo, é tida como contravenção penal, sujeita a multa. “Existe esse vácuo entre a importunação ofensiva ao pudor e o estupro”, diz a promotora Maria Gabriela Manssur.
Dois projetos de lei que tramitam no Congresso pretendem preencher esse “vácuo” criando um novo tipo penal. Eles propõem no mínimo dois anos de prisão para quem constranger, molestar ou importunar sexualmente alguém, mesmo sem contato físico. Aprovados no Senado em outubro, os textos de autoria de Humberto Costa (PT-PE) e Marta Suplicy (PMDB-SP) agora estão na Câmara.
Juridicamente, o assédio que Maria sofreu ao ser abordada pelo motoqueiro é estupro, já que foram cometidos “atos libidinosos” por meio de ameaça –mesmo que não tenha havido “conjunção carnal”.
Apesar das piadinhas que ouviu na delegacia, pelo menos desta vez ela foi denunciar. A situação 13 anos atrás foi diferente. Por mais de uma década, ela guardou para si o fim de tarde em que foi arrastada para debaixo de um viaduto e estuprada por um desconhecido.
Hoje, todos os dias ela pega carona com uma vizinha para percorrer os três quarteirões entre sua casa e seu carro. Seu filho, de dez anos, a acompanha a todo lugar.
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