‘Elas estão entregues à própria sorte’, reclama presidente de organização contra violência
(O Globo, 16/08/2017 – acesse no site de origem)
Seis quilômetros separaram, no último final de semana, dois endereços na zona leste de São Paulo marcados por um crime que tem aumentado as estatísticas da violência contra a mulher. Tomados por ciúmes, dois homens não encontraram outra forma para resolver problemas na relação conjugal. Sacaram o revólver e acabaram com a vida de suas ex com tiros à queima roupa. Geisa Feitosa, 30 anos, chegou a implorar de joelhos para não ser morta. Foi assassinada com quatro tiros, na frente das duas filhas. Perto dali, cerca de 24 horas depois, foi a vez de Aline Camila, que se recusava a retomar o namoro. Foi assassinada no ponto de ônibus, após uma discussão sobre “ciúmes e traição”, como contou o assassino na delegacia.
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Embora não haja relação de um crime com o outro, ambos são ligados pela violência do feminicídio, tipificado como crime hediondo desde março de 2015, ainda na gestão da então presidente Dilma Rousseff.
A manicure e cabeleireira Geisa Feitosa, 30 anos, foi assassinada pelo ex-companheiro Ricardo Daniel Pappalardo, de 48 anos, na frente de suas filhas de 4 e 13 anos. Aos policiais, uma das filhas contou que o homem já chegou na casa apontando a arma para a ex-companheira. Disparou os tiros após uma rápida discussão. Pai da menina de quatro anos, Pappalardo se apresentou acompanhado da filha na 70ª Delegacia de Polícia (Sapopemba) e entregou o revólver calibre 38. Um dia depois do crime, sem flagrante, conseguiu o direito de aguardar o inquérito em liberdade.
No início do mês, Geisa teria ido à Delegacia da Mulher, em São Mateus, pedir proteção. Queria ficar distante do ex-companheiro, com quem viveu cinco anos. Em mensagens de texto e voz enviadas à prima Bruna Rodrigues, ela relatava que vinha sendo perseguida. “Tenho pânico de pensar que ele pode fazer alguma coisa”, escreveu ela, segundo mensagens obtidas pelo GLOBO. Em outro trecho comentou sobre a ida à polícia: “Fui na delegacia da mulher e nunca me senti tão lixo igual me senti naquele lugar.”
A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo informou que não foram encontrados registros de atendimento de Geisa na Delegacia da Mulher.
— A Geisa era mantida quase em cárcere privado. Ele dormia com arma embaixo do travesseiro pois achava que ela tinha outra pessoa. Ele batia nela na frente das crianças — contou Barbara. De acordo com a prima, o casal se separou em dezembro do ano passado.
O assassinato de Aline Camila, vendedora de 29 anos, aconteceu quando ela chegava do trabalho. Tiago Santos Fagundes de Souza, 27 anos, a esperou chegar no último domingo. Os dois também discutiram. Ele a matou ainda no ponto de ônibus. Preso em flagrante por policiais militares que o viram correndo, Tiago contou que foi esperar a vendedora e atirou após uma discussão por “ciúmes e traição”. Souza continua preso por homicídio qualificado e porte ilegal de arma.
— As leis existem e, na teoria, funcionam bem, mas, na prática, as mulheres estão entregues à própria sorte. A polícia não chega quando é chamada, não existem lugares de acolhimentos, é preciso esperar bastante para prender um agressor. As mulheres acabam se cansando de ir à delegacia. Na maioria das vezes, preferem fugir e viver no anonimato — diz Raquel Marques, presidente da Artemis, organização que milita contra a violência contra a mulher.
De acordo com a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo, de janeiro a junho deste ano, o número de medidas protetivas solicitadas pela Polícia Civil, na capital, chegou a 4.130, um aumento de 37% em relação ao mesmo período do ano passado. O órgão informou ainda que estabeleceu um padrão de atendimento nos casos de violência contra a mulher, seja física ou sexual, com o intuito de aperfeiçoar o acolhimento às vítimas e melhorar a eficiência nas investigações e coleta de provas
O estado de São Paulo conta com 133 delegacias de Defesa da Mulher, cerca de 35% de todas as que existem no país.